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Impeachment como a medida extrema de contenção da pandemia
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Impeachment como a medida extrema de contenção da pandemia

Tipo Análise

Antes do endurecimento das normas de vigilância sanitária, bois, reses e garrotes eram abatidos nos matadouros do sertão a céu aberto. Normalmente, nas menores localidades, os animais eram mortos na madrugada que antecedia a feira. Noites de sexta-feira ou de sábado.

Num distrito do interior da Bahia, além dos donos dos animais, uma plateia heterogênea se juntava para assistir à execução do gado de corte. Havia um ritual social que congregava espectadores e os homens que batiam com a marreta no osso frontal do crânio dos bovinos, para depois sangrá-los com uma perfuração na jugular. Outros jovens eram responsáveis pela separação das carnes que seriam dependuradas em guinchos nas mercearias e barracas no dia seguinte. Tomava-se cachaça, conversava-se sobre variados temas e sobre alguns novilhos corajosos que resistiam como podiam no corredor que os levava um a um à morte. Saltavam, se debatiam contra as vigas grossas de madeira, à medida que viam seu destino com o andar da fila.

Quando tinha perto de doze anos, fui com amigos que, apesar de morarem lá, jamais tinham ido ao matadouro. Sentados, éramos quatro, na fileira mais alta das cancelas de madeira que delimitavam o corredor, fixamo-nos na inquietação, refletida nos olhos vidrados, que ia tomando conta dos Zebus e de alguns Tabapuãs, bois mochos de cor branca, enquanto se aproximavam do salão circular. Não conseguimos ver mais do que uma pancada na testa de um macho que se desequilibrou, enquanto uma segunda o levava ao chão. Rapidamente, outro homem, como um cirurgião, encontrou a veia no pescoço que logo esguichou sangue para uma bacia, antes do animal ser içado. Pelo menos é assim que me lembro.

Não sei quem saltou primeiro e se encaminhou para a pracinha. Mudos, andamos de volta numa noite fria de meio de ano. Um deles comentou, depois de algum tempo, que pelo menos alguns tentavam escapar, arremetiam contra quem estivesse próximo e tentavam romper o cerco do curral, mesmo quando se precipitava o destino inexorável.

Mais de 20% das mortes por Covid-19 que ocorrem diariamente no mundo são de brasileiros, embora nossa população represente apenas 2,7% da mundial. Não temos vacina em quantidade que permita uma aceleração da campanha. Governadores e prefeitos arcam com ônus de adotar medidas não-farmacológicas duras de restrição de atividades econômicas e circulação de pessoas quando milhares de pessoas em todo Brasil, simultaneamente, esperam em uma extensa fila por um leito de UTI. Sem redução da transmissão comunitária, caminhamos rápido para a tenebrosa marca de três mil mortes por dia. Ou se diminui rapidamente a pressão assistencial ou as pessoas morrerão em casa ou ao relento.

 

"O pesquisador e professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes tem defendido o que chama de impeachment pró-vida, em que afirma que as ações deletérias e omissões do governo durante a pandemia justificam seu impedimento, enfatizando que “estamos falando de operação de salvamento (...) Com receio de banalizar o impeachment, vamos banalizando o crime de responsabilidade"

 

Na situação em que estamos todos os países recorreram ao mais restrito lockdown, tanto na primeira quanto na segunda onda de contaminação. Na Alemanha, Itália, França, Espanha, Reino Unido, Israel, Portugal, os chefes de Estado explicaram a situação de colapso do sistema de saúde e reforçaram ações de suporte social para segmentos profissionais específicos e para os mais vulneráveis. Sobretudo, pontuaram que a tarefa mais digna de um governante é proteger a saúde da população, e que todo esforço deve ser empreendido para salvar vidas.

Nos Estados Unidos, mesmo com o negacionismo explícito de Trump, acordos de compra de vacinas foram sacramentados ainda no início do segundo semestre de 2020. Quando o presidente Joe Biden assumiu em 20 de janeiro de 2021, uma força tarefa de especialistas foi montada. Esta passou a coordenar a campanha de vacinação em nível nacional e a acompanhar a evolução da pandemia, junto com o Centro de Controle de Doenças de Atlanta (CDC). Cinquenta dias depois da posse do novo presidente, a média diária de casos e mortes no país tinham caído respectivamente 71% e 55%.

Ataques ao uso de máscaras (ao contrário, seu uso obrigatório foi regulamentado através de lei federal) ou às medidas necessárias de isolamento social foram eliminados completamente do discurso presidencial. Um amplo pacote de US$ 1,9 trilhão de dólares foi recentemente aprovado pelo Congresso Americano para, entre outros objetivos, incentivar a geração de empregos e viabilizar mecanismos de transferência de renda para os grupos mais atingidos.

Por aqui não temos a sorte dos americanos de ter uma eleição que se avizinha. O presidente continua sistematicamente atacando as medidas de isolamento social, enquanto debocha dos brasileiros em luto e só usa máscara, junto com seus ministros militares, quando se sente ameaçado politicamente por seu principal opositor. Nenhuma palavra sobre prevenção da circulação do vírus, desde a declaração da pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), um ano atrás.

Mesmo que se consume a demissão do general da ativa e ministro da Saúde Eduardo Pazuello e com ela haja, em alguma medida, uma desmilitarização do ministério, com convocação de bons profissionais, isso pouco alterará o cenário. Não haverá um abandono radical do discurso negacionista do presidente simbolizado pelo proselitismo do uso de drogas ineficazes, pelo desdém reiterado (até recentemente) pelas vacinas, pela falta de solidariedade com pacientes e famílias dos mortos, e pelo boicote às medidas de distanciamento. Ele e sua claque são reféns das delirantes ações e gestos tomados desde o início. Como o investigado Pazuello, o próximo ministro, apenas vocalizará e empreenderá o que lhe for atribuído pelo Planalto.

 

"A sensação de estarmos vivendo em um gigantesco abatedouro. Aterrorizados, donde estamos, avistamos o longuíssimo corredor. Logo qualquer um de nós pode ser arrastado para a fila. Muitos não sobreviverão. Nas redes sociais, os seguidores de Bolsonaro são chamados de “gado”, por bovinamente obedecer às ordens do líder. Discordo. Por ora, gado de corte somos todos"

 

Agora, após sete meses da primeira proposta da Pfizer, que ainda em agosto de 2020 previa a entrega de 70 milhões de doses ao Brasil até dezembro, tenta-se assinar acordo de compra de imunizantes com a farmacêutica. Se concretizado, a vacina chegará muito tarde. Por muito tempo Bolsonaro ironizou a pressa dos brasileiros, talvez não acreditasse numa segunda onda. Uma de suas frases que mais revela o quão ignorante alguém pode ser acerca das políticas de saúde na vigência de uma pandemia foi proferida no dia 26/10/2021 quando indagou “Não é mais barato ou mais fácil investir na cura do que até na vacina?”. Na ocasião já havia acontecido o encontro com os representantes da Pfizer. Vários países já estavam assinando contratos de compra. Em dezembro, Bolsonaro disse que a epidemia estava no “finalzinho”.

Em carta ao embaixador da China no Brasil, datada de 8 de março de 2021, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Antônio Élcio Franco Filho, pediu apoio para que se viabilizasse (se houvesse disponibilidade) a compra de 30 milhões de vacinas da Sinopharm, laboratório chinês. Caso contrário, ele afirmou que “a campanha nacional de imunização corre risco de ser interrompida por falta de doses, dada a escassez da oferta internacional.” Na carta não se desculpou por todas as agressões que Bolsonaro, seus filhos e o chanceler Ernesto Araújo fizeram corriqueiramente ao país e ao próprio embaixador Yang Wanming.

No dia 5/2/2021, mais um pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro foi protocolado na Câmara dos Deputados. O primeiro pedido encaminhado para o novo presidente Arthur Lira (outros sessenta foram recebidos pelo antecessor, Rodrigo Maia). Alega-se “que o presidente incorreu nos crimes previstos nos artigos 7.9 e 9.7 da "lei do impeachment" (Lei 1.079/1950): atentar contra o direito fundamental à vida e à saúde pública e individual dos brasileiros e atentar contra a probidade administrativa, agindo de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro, respectivamente.” Entre os signatários estão o ex-ministro da saúde José Gomes Temporão, o primeiro presidente da Anvisa, o sanitarista Gonzalo Vecina, e o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei.

O pesquisador e professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes tem defendido o que chama de impeachment pró-vida, em que afirma que as ações deletérias e omissões do governo durante a pandemia justificam seu impedimento, enfatizando que “estamos falando de operação de salvamento (...) Com receio de banalizar o impeachment, vamos banalizando o crime de responsabilidade.”

Não suportaremos milhares de mortes evitáveis todos os dias por muito tempo. Não interessa que não tenha “clima” no Congresso, nem mesmo que não prossigam as dezenas de pedidos. Seguindo os ritos constitucionais previstos e respeitando os 58 milhões de votos que elegeram Bolsonaro, moralmente, todos os agentes públicos revestidos de um mandato popular deveriam propor o impedimento como forma de salvar vidas. O afastamento do presidente é a estratégia mais efetiva de contenção da pandemia.

Nos últimos dias, as cenas daquela madrugada sertaneja distante têm me assombrado em sonho ou vigília. A sensação de estarmos vivendo em um gigantesco abatedouro. Aterrorizados, donde estamos, avistamos o longuíssimo corredor. Logo qualquer um de nós pode ser arrastado para a fila. Muitos não sobreviverão. Nas redes sociais, os seguidores de Bolsonaro são chamados de “gado”, por bovinamente obedecer às ordens do líder. Discordo. Por ora, gado de corte somos todos.

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Antonio Silva Lima Neto é médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Professor do Curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor), gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza. Integrante do Comitê Estadual de enfrentamento do Novo Coronavírus (Ceará)

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