Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
Início da noite no centro da cidade. Rua Barão do Rio Branco quase vazia, caminho rápido, descendo na direção Santa Casa e Passeio Público. O estacionamento fecha às 18h30. Meu amigo manobrista me atualiza sobre o quadro clínico do pai e do filho da família proprietária. Ambos com Covid-19. Compartilho meu número de telefone. O rapaz, que se chama Pedro, tem algumas dúvidas.
Contorno pela Rua São Paulo e dobro à direita na Major Facundo. Logo à frente, na Praça do Ferreira, há movimento. São centenas de pessoas. Genericamente definidos como população de rua. Chove fino. Colchões sob as marquises e próximos dos bancos da praça, varais e redes puxados de uma árvore à outra, ou amarrados aos postes. Grupos conversam, bebem, casais se beijam, se estranham, homens gritam, meninos e meninas bem pequenos comem em marmitas de alumínio. Crianças, jovens e idosos, vindos não sei de onde, trazendo que histórias, vão passar a noite. Alguns dormindo, outros em vigília ou delirando. Na extremidade oposta vejo mais gente. Alinham-se desde a bilheteria do Cine São Luiz até a travessa Severiano Ribeiro, se escorando no concreto. Rodger Rogério canta os versos de Dedé Evangelista¹ .
Não há nada pra ser feito. Está tudo tão direito. Já na Aldeota, na Desembargador Leite Albuquerque, vejo as faixas nas sacadas dos restaurantes fechados. Está escrito #VaiDarCerto. Está tudo tão direito. Vai dar certo, repetem os adesivos. Será?
“A noite vem chegando Um ônibus parando A vida, a vida é mesmo normal Será que ninguém sabe Aquilo, aquilo que não cabe Nas folhas, nas folhas, nas folhas de jornal”
Ninguém sabe aquilo que não cabe nas folhas de jornal, nas correntes de Whatsapp, no Instagram, no Facebook. Ninguém sabe mais onde é a Praça do Ferreira. Os que lá estão não cabem em lugar algum, em lugar nenhum. Continuam pacíficos, não há revolta. É Deus, a vida é mesmo tão normal.
Qualquer que seja o desenlace, o negacionismo triunfou. As 370 mil vidas perdidas para a Covid-19, que logo serão meio milhão, é a prova incontestável da acachapante derrota da ciência, da razão e da humanidade. Atualmente, uma em cada três vítimas fatais da Covid-19 no mundo é brasileira. Morrem mais pessoas do que nascem e nossa expectativa de vida cai. O mundo enxerga o Brasil como ameaça global e celeiro de novas variantes. A vacinação é lenta, não há perspectiva de lockdown nacional e muito menos de um auxílio emergencial minimamente digno.
Desde a antiguidade sempre estiveram juntas. As pestes e a fome. Dados da pesquisa “Olhe para a Fome”, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, aponta que aproximadamente 19 milhões de brasileiros estiveram em situação de fome em algum momento do último trimestre de 2020. Mais da metade da população (55% ou 116 milhões de brasileiros) relatou algum nível de insegurança alimentar no período. Durante a maior crise social e sanitária brasileira, a ausência ou intermitência de medidas coordenadas de suporte social e de garantia do emprego nos levaram de volta para o mapa da fome.
A propósito, li a mensagem do Pedro. Trazia uma foto da prescrição de medicamentos feita por um médico que o atendeu em um Pronto-Atendimento da rede Hapvida no dia 11 de abril de 2021. Apesar de estar com sintomas leves e nos primeiros dias da doença foi prescrito o Kit Covid. Pedro teve medo de tomar a cloroquina. As outras drogas ele está usando por “via das dúvidas”.
Seria salutar e transparente que os seguros de saúde com abrangência nacional, cujos acionistas majoritários têm tido tanto êxito nos negócios, viessem a público esclarecer se continuam a distribuir um Kit Covid de tratamento precoce, inclusive antes da confirmação do diagnóstico, de maneira profilática. Se possível, apresentando evidências científicas sólidas que sustentem a opção, uma vez que tal combinação de drogas não é utilizada em qualquer outro país. Ainda mais agora quando o Ministério Público Federal (MPF) recebe representação, liderada pelo cardiologista e professor da USP Bruno Caramelli, para que investigue as razões pelas quais o CFM (Conselho Federal de Medicina) segue permitindo o uso de drogas sem eficácia comprovada. O abaixo assinado que segue com a petição tem mais de 22.000 assinaturas.
No posto de gasolina, impaciente a canção chama para a ação. Atitudes, mudanças, ações. Inconformado o poeta pressente movimentos.
“Primeiro, uma atitude Segundo, algo que mude Terceiro, ação, ação de mudar”
Estudos recentes publicados em duas das mais importantes revistas científicas do mundo apontam que, a despeito da desastrosa resposta brasileira, algumas estratégias de contenção da pandemia implementadas pelos Governos Estaduais, sobretudo do Nordeste, tiveram algum êxito. Particularmente, o artigo da Science cita a capacidade que o Ceará teve em tornar mais lenta a progressão da epidemia da Capital para o Interior com base nos padrões de mortalidade. Também é mencionada a resiliência do Estado que, mesmo em situação social e assistencial historicamente mais precária do que as unidades do Sul e Sudeste, foi capaz de definir ações locais bem-sucedidas no contexto nacional.
Por fim, decepção. Desesperança setecentista, existencial. Canto de saída, derrotado. No elevador ecoa. A melancólica chegada do táxi impossibilita o encontro. Só restam desculpas.
“Porém nada acontece Um táxi, um táxi aparece Melhor, bem melhor, melhor se desculpar”
Passaremos. Não sei o que vai dar certo. Certamente, algo, para alguns. Para outros, dor, sofrimento, saudade, indiferença. Seguir sem, todavia, esquecer.
¹ A canção Curta Metragem é uma parceria de Rodger Rogério e Dedé Evangelista gravada pela cantora Teti no álbum Pessoal do Ceará (1973). A versão a que remete a coluna é uma regravação presente no álbum Rodger de Rogério (2003). A grafia original, anterior ao acordo ortográfico, foi mantida nos trechos da letra que são reproduzidos na coluna.
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