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Varanda, espaço de liberdade
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Varanda, espaço de liberdade

Quando a ferida é na alma e a dor é na carne, o mundo vegetal é emplastro que vai amolecendo e tratando, é ajuda no demorado processo de cura. Na água da rega do meu pé de limão, por exemplo, vão maceradas muitas saudades e ele me retorna com citrinos e florzinhas cheirosas.
Tipo Crônica
Pé de limoeiro na varanda (Foto: Ariadne Araújo)
Foto: Ariadne Araújo Pé de limoeiro na varanda

As margaridas são bichos exigentes. Gostam de viver a meio sol ou a meia sombra, como preferir. Também muita água, ar puro e vista. Por isso, como eu, elas amam o pequeno espaço de liberdade do apartamento onde moro, a varanda. Minha relação com elas não é das mais fáceis. Conhecida por não ter a famosa mão verde, já matei de sede e da falta de jeito outras plantinhas que vieram habitar a casa, no passado. Por respeito aos vegetais, desisti de adotar outras. Mas, eis que o confinamento, a dúvida do seu tempo de duração e a promessa de sol direto no lado sul, com a chegada do verão, fizeram-me reconsiderar.

Afinal, é preciso admitir, na falta de sair às ruas, de ir aos jardins e parques, instala-se uma enorme carência de natureza que venha rebater essa monotonia do cimento das construções e telhados dos prédios vizinhos. Também cortar a visão banal do asfalto da rua que passa embaixo, das pedras dos estacionamentos. Com o tempo, os olhos pedem mais. Então, você se pega um dia, na ponta dos pés, investigando o horizonte, pela janela: “repara, o velho plátano do vizinho tem folhagem nova” ou “viste que o freixo, em frente ao restaurante, está florindo em cachos?”.

De repente, como se tivesse vindo do nada, surge a urgente necessidade de toques de verde, de florzinhas coloridas, de folhinhas novas, brotos em galhos ao alcance da mão. Uma vontade de beleza natural. Tenho uma amiga que (quase) transformou a casa em viveiro, na pandemia. Um corredor de jarrinhos, cores e formatos variados, que se acotovelam em todos os mínimos recantos da sala ao quarto, do quarto ao banheiro, do banheiro à cozinha, da cozinha ao balcão. Um labirinto de trepadeiras e florzinhas, nem a geladeira escapa às investidas vegetais. Dela recebi, inclusive, a noticia de uma nova adoção, que me maravilhou pelo nome e pela novidade: uma rosa do deserto.

Não chego a tal performance, falta-me talento. Mas, para além das simplórias margaridas que me lembram viagens no campo, fui atrás de uma outra companhia talvez mais laboriosa, mas era sonho antigo: o de ter um pezinho de limão. Encontrei tal formosura no outro lado do país. Resultado de tecnologias modernas, uma bricolagem de DNAs – meu limoeiro é um mix de espécies, em miniatura. Vinte centímetros de encantos, e daí não passa. Emocionam os frutos pequeninos, a balançar nos galhos frágeis e, a esta época, também as flores perfumadas. Quem resiste? Chama-se Oriana, trato-o como um filhote de gatos: pega sol e toma água pela manhã, lá fora, e à tardinha entra para o conforto do vaso.

Vou, assim, atravessando o nevoeiro de notícias ruins abraçada com as minhas novas plantas. Elas tiram-me de mim mesma, chamam-me mais para a varanda, pedem-me coisas concretas, como água e luz, ao contrário de outras solicitações, as das redes sociais. Queres ser meu amigo? Quero, sim, dona margarida. Quero, sim, senhor meu pé de limão, com todo o gosto. Na saudade de outros amigos, apartados de mim pelo confinamento ou pela geografia, vou reaprendendo com elas a adubar afetos e a fazer fotossíntese. Logo logo estarei também a florir. E, para os curiosos de citrinos, o limãozinho miniatura é um tantinho amargo, mas, nada que não se supere com uma boa dentada e apetite pela vida.

Foto do Ariadne Araújo

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