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Tempo de ressimbolizar
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Tempo de ressimbolizar

Fim dos pesados caixões de madeira. Agora o negócio são urnas biodegradáveis, cinzas ao vento, mechas de cabelo em relicários e despedidas dignas de cinema. Liberados da decomposição e enterros lúgubres, o novo ritual de adeus promete levezas e bonitezas que se desmanchem no ar
Tipo Crônica
Uma das espécies de borboleta existente no Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, no Ceará. 2020. Foto: Demitri Túlio (Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Uma das espécies de borboleta existente no Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, no Ceará. 2020. Foto: Demitri Túlio

O cinema tinha já nos apresentado a cena, centenas de vezes. Alguém dispersa as cinzas do ser amado do alto de uma montanha, nas águas dos rios, num oceano sem ondas, na natureza: “tu és pó”. Hoje, longe da ideia idílica vendida nos filmes, vemo-nos com esta realidade nova para nós, trazida na rede de arrasto da pandemia. A de deixar cremar nossos mortos, ao invés de enterrá-los, tal qual nossos pais faziam antes de nós.

São os tempos, a tecnologia, a necessidade. A ideia me veio à cabeça porque minha professora de italiano foi buscar, dias atrás, a urna do cunhado dela, mais uma vítima do Covid. Sabendo do amor amical que ela tinha pelo rapaz, fiquei pensando: o que fará agora com a urna, com as cinzas? 

O problema fez avançar o business das funerárias, que explodiu, sofisticou-se, fez cash com a pandemia. A depender do pacote pago pela família, as cinzas são levadas em barcos-cerimônias às águas pretendidas - harpas, violinos, ave-Marias no programa. Para os que não querem jogar assim, com as mãos e ao léu, os restos do pai ou da mãe, há já solução adaptada.

Pode ser a urna biodegradável, que afunda, dissolve-se – material e cinzas viram comida para os peixes -, integra-se à paisagem do fundo do mar. Na resistência, há opção, minha senhora, meu senhor, veja esta linda urna com GPS integrado, pode-se, do conforto da casa, geolocalizar seu morto, sempre que quiser. 

Em Portugal, o business deu um passo além. Já é possível depositar as cinzas em urna forrada com terra e sementes, o todo a ser enterrado em local de escolha da família. O defunto, em breve, vai renascer em um belo pinheiro-bravo, crescer e ficar mais alto que a copa das árvores. Se tiver sorte e salvar-se de mãos criminosas que ateiam incêndios todos os anos, por estas bandas, no verão, tornar-se-á centenário - pois estas são plantas vivedoras.

No caso de disputa ou ciúmes pelas cinzas, o resto do defunto pode ser ainda dividido em pequenas urnas, uma para cada um. Um precinho a mais e inclui-se ainda uma rosa banhada em prata ou um relicário de ouro, dentro um tiquinho de cinzas, o morto assim fica com você, vira joia de família. 

São tantas as opções, a gente fica tonto. Antes da pandemia, eu tinha já me surpreendido com uma tradição, na Bélgica. O costume simpático e (salvador) de convidar, na saída da cerimônia, um pequeno grupo de amigos mais íntimos para sanduichezinhos e cafés em uma grande sala, devidamente reservada e arrumada, para tal.

É aí que você, refeito das emoções, respira, livra-se não só ao apetite – não sei o porquê, funerais sempre me deram fome –, mas também atualiza-se das novidades trazidas pelos outros companheiros de mesa. No Portugal profundo, havia também a tradição de um café ou um copo d’água para se refazer das emoções do funeral. Mas, os tempos modernos apropriaram-se e monetizaram estes momentos de consolo socializado. 

Agora é catering. Um serviço oferecidos pelas funerárias que dá direito a cafés, bolachas e bolos. Pode sair até uma sopa, sustância para os enlutados. Em um jornal local, certa feita, um diretor de vendas de uma destas empresas de funeral explicou que “não é festa, é conforto”. O que ele não disse é que o conforto tem um preço e pode vir acompanhado de reportagem fotográfica ou filmagem.

Pois, tal e qual os casamentos, festas de quinze anos, batizados, os enterros também são ritos de passagem, na nossa cultura ocidental. Mas, com a pandemia, o receio justificado de contaminação, os enterros como conhecemos foram suspensos. Vão continuar a existir, por certo, no futuro. Mas, por ora, sem o peso da terra, ganham também os mares e os pinheirais, em urnas. A morte foi ressimbolizada.

Foto do Ariadne Araújo

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