Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Quais seriam as maleitas apanhadas na esteira do nervoso destes tempos? Ao que parece, o sono, ou melhor, a falta dele, puxa a ciranda dos novos "dodóis". Enquanto uns dormem mal, outros dormem pouco, alguns dormem nada. O problema tem até nome, é o corona-insônia
Da minha dentista eu soube, por exemplo, que os pacientes desenvolveram o péssimo hábito de ranger os dentes, à noite - a ciência chama de bruxismo. O cabeleireiro diz que os clientes ansiosos puxam e arrancam fios, tufos inteiros, abrindo clareiras no meio do coro cabeludo. A manicure explica, por sua vez, que, de muitas das mãos que por ela passam, foi o roer de unhas a mania que voltou, em alta. A tia de uma amiga desenvolveu síndrome de pânico.
E por aí vai. Hélas, não tive a oportunidade de sair a interrogar profissões e completar, assim, o meu rol de maleitas, efeitos colaterais e manias novas, que explodiram durante o tempo de confinamento. E não só em Portugal.
No meu caso, foram os sonhos. Mais agravam-se as notícias, mais a fábrica noturna põe-se a martelar, a aparafusar, a apertar, a cavar, a modelar formas, a mudar as coisas de lugar, a cuspir cenários, lugares e situações, criando roteiros inteiros de filmes de ação. No subconsciente, enceno minha missão impossível. Acordo exausta.
No meio da noite, a mão agarra com força os lençóis. Seguro-me no colchão. Não é que sejam pesadelos, nem sonhos ruins, posso garantir. Mas a realidade deles me deixa cismada. Ou encabulada. Manhã cedo, mal abro os olhos, o marido traz-me na cama um café forte e uma pão sem côdea, como seu eu fosse Blimunda e ele Sete-Sóis, e pergunta-me, curioso: o que você sonhou hoje? Sonhei que.
Não é à toa que se arrancam cabelos, rangem-se dentes, roem-se unhas. Somos nós, em guerra com inimigos invisíveis, no atravessar das noites e dos dias
Foi um transatlântico de luxo que deslizou pelas águas do Tejo, como fazem muitos no verão, em Lisboa. À minha porta, lançou âncoras. Sai para investigar e, estupefata, vi dois elefantes mortos, na carroceria de uma carreta. Alguém me diz, é carne para alimentar turistas. O quê? Eu gritei, eu corri, eu saltei. Acordei, em sobressaltos de indignação.
Outra noite, sabe?, entrei em uma catedral gótica, toda blocos de pedras alvíssimas. Na ala central, ensaio um primeiro passo, mas, mal o pé toca o chão, fração de segundo, as paredes mexem-se. De novo outro passo, de novo, a alvenaria expande-se, em largura e altura. O teto gótico já quase às nuvens. Tenho a estranha sensação de penetrar, perigosamente, em um enorme ser de pedras, como Jonas, no ventre da baleia.
Enquanto eu durmo e acordo assim, agitada, fico sabendo, pelos amigos e jornais, que as atuais incertezas da vida, trazidas pela presença do vírus, causam também efeito oposto – impede as gentes de dormir. É a insônia ganhando terreno. Um rolar de um lado e outro da cama, um afofar de travesseiros, um puxa-e-tira lençóis, para nada. O sono não vem. Anda irreconciliável. Vi na imprensa, o fenômeno é mundial.
Alarmados com o número de queixas, os pesquisadores deram um nome aos bois. Portanto, você que, ultimamente, não dorme bem à noite sofre de “coronasomnia”. Na tradução para o português, “corona-insônia”
Alarmados com o número de queixas em pesquisas, os pesquisadores deram um nome aos bois. Portanto, você que, ultimamente, não dorme bem à noite sofre de “coronasomnia”. Na tradução para o português, “corona-insônia”. Dos efeitos colaterais, listam-se irritações por um tudo e um nada, ataques ao frigorífico e encontrões na vida pessoal.
Já viu a ponta do Iceberg? Os jornais falam, inclusive, de um tsunami de depressões e burnouts. Entre atordoados com o presente, preocupados com o futuro, ou pensando no tempo perdido, como o personagem de Proust, frequentamos agora salas online de terapeutas - e ainda bem. Não é à toa que se arrancam cabelos, rangem-se dentes, roem-se unhas. Somos nós, em guerra com inimigos invisíveis, no atravessar das noites e dos dias.
Por isso, na mesa de cabeceira, moram agora comprimidos de Valeriana, a planta com propriedades calmantes e sedativas. O rapaz destruidor de cabelos cortou-os curtíssimos. A menina das unhas pôs implantes. Cada um, à sua maneira, vai achando portas e janelas, para o respiro. Até podermos andar de novo por aí, sem que as paredes, os tetos e chãos do mundo movam-se de lugar.
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