O ritual dos verões quentes e ventosos: a época dos megaincêndios está de volta
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
O ritual dos verões quentes e ventosos: a época dos megaincêndios está de volta
Eu bem sei. O assunto prometido para hoje eram os tais sprays, com cheiros do passado. Mas, o calorão exagerado, que chegou por aqui sem pedir licença, trouxe a lembrança traumática de outro cheiro, o de fumaça de incêndio. O alerta é geral, Portugal entra na temporada dos mega fogos, que ardem florestas e matam gente e animais, todos os anos. Resolvida esta urgência, semana que vem voltamos para engarrafar histórias
Foto: DEMITRI TÚLIO
As mudanças climáticas têm alterado cada vez as temperaturas pelo mundo. Verões mais severos, secas, incêndios, enchentes. No detalhe, o Parque das Dunas da Sabiaguaba em Fortaleza/Ceará
Na praia, sorvete na mão, pensando em criar coragem para dar um mergulho nas águas frias do mar. Maneira eficaz de aplacar o calor dos dias quentes de verão, em Portugal. E teria ido, não fosse dar-me conta de um cheiro forte de queimado, entrando narina adentro, e uma coluna de fumaça embaçando a beleza da onda perfeita. Sobre nossas cabeças, de repente, o céu é chumbo e o sol alaranjado.
E em meio aos gritos dos banhistas, mais preocupados com a beleza de mergulhos, braçadas e saltos improvisados, o barulho das hélices de um helicóptero voando baixinho, quase a tocar a superfície agitada das águas. Traz um balde gigante, suspenso por um cabo, para recolher uma quantidade das vagas salgadas. O que, nessa imensidão, não há de fazer falta à leva de surfistas, que coalham, em bons dias de vento, faça chuva ou faça sol, o oceano português.
Incêndios. A tragédia se repete todos os anos, à mesma época, em Portugal. Também na Espanha, Itália, Grécia, França. Por isso, advinha-se, o vai-e-vem do helicóptero é para combater mais um destes fogos. Por exemplo, o do domingo iluminado, não muito longe da praia festiva, em que frequento. Pelo telefone, fico sabendo que são três, só nas cercanias. O mapa do país tem manchas em vermelho. A gente fica logo assustada. O sorvete de morango derrete inteiro na mão, e eu nem ligo. É que o trauma de 2017, em Pedrógão Grande, ainda arde, na lembrança.
O megaincêndio que entrou para história do país como o mais mortífero - 66 pessoas perderam a vida e outras 254 saíram feridas. Sem contar as centenas de animais queimados vivos e hectares de florestas transformados em cinzas. Paisagens carbonizadas – cemitérios.
Naquele ano, a catástrofe acabou cedo com o gosto das horas de brincadeiras e saltos despreocupados, no mar. Porque foi logo no começo do verão, a semana de horror, em direto, pela tevê. Vinte e quatro horas de transmissão, em todos os canais, das incontroláveis línguas de fogo, empurradas em todas as direções por ventos ciclônicos.
E, no meio desse inferno de chamas e fumo, o desespero das pessoas. Portugal caiu de joelhos. Por isso, nem que eu viva cem anos. Nem. E agora lá vamos nós de novo para mais um período de riscos. Pois, os meteorologistas anunciam novo ciclo de temperaturas acima dos 40 graus.
Calorões impressionantes - que vão e vêm. E, da combinação deles com ventos, sai o cenário ideal para novos fogos. Mas, há mais que condições climáticas favoráveis, nesta história de incêndios, na Península Ibérica.
É que mãozinhas humanas também têm lá culpa no cartório. E nem falo dos gases carbônicos, jogados pelo homem na atmosfera, todos os dias. Contribuição para o desregulamento climático, no Planeta. Isso todo mundo está careca de saber.
"Safo-me com o abano nervoso de um leque, perguntando aos meus botões se alguém morre devido ao calor, no Brasil. Lúcifer é o nome deste calorão, na Itália, responde o botão da camisa. E completa, que há muitas e variadas formas de inferno por aí"
Mas, por estes lados, também é a falta de limpeza dos terrenos agriculturáveis que acrescenta um grão. Obrigada por lei, mas descaradamente descumprida. E pouco fiscalizada. O que deixa por aí ao léu quantidade de material combustível, pronta para acender incêndios.
Para completar o quadro, há ainda os pirômanos de plantão. Bêbados com isqueiros, pontas de cigarro jogadas por distração, vinganças após disputas entre vizinhos, fragilidades financeira e mental ou falta de integração social ainda são cenas comuns. E agora, para complicar um pouco mais as coisas, surgem novidades nas artes de atear fogo.
No distrito de Castelo Branco, um engenheiro eletrotécnico dedicava o tempo de folga a seu projeto secreto. O fabrico de engenhos com temporizadores, para programar incêndios, com horas ou dias de antecedência. De olho nas temperaturas, direção dos ventos e grau de umidade, ele escolhia um bom lugar para pendurar em galhos, suas invenções.
Levava em conta declives do terreno e linhas de água, nas proximidades. Tinha preferência por zonas cobertas de eucaliptos e pinheiros, altamente incandescentes, com potencial de alastrar fogo até as casas, nas aldeias. Fins de semanas animados, com festivais e festas de verão? Ótimos para botar fogos. Depois, para não dar nas vistas, mostrava-se em lugares públicos, à espera de que a fumaça de notícias ruins desse um sinal, nos céus. Foi preso, mas até lá arruinou a vida de muita gente.
Ora bem. O verão já vai a meio e a pressão nas alturas. Será assim até o fim da temporada. Principalmente com tais ventos quentes, soprados da África. E não é nada parecido com os escaldões agrestes, do sertão do Ceará. No pico do dia, a depender do lugar, tem-se a sensação de não poder respirar.
Em Andaluzia, em Sevilha, na vizinha Espanha, pássaros caem mortos, das árvores. Já imaginou? Pois, na Espanha, também na Bélgica e em Portugal, a canícula mata, todos os anos. Por isso, para evitar calorões febris, fecham-se janelas, descem-se persianas, ligam-se inúteis ventiladores. Ou corre-se para o refresco das sombras nos parques e banhos de praias.
Anos atrás, foi o jeito dormir na praia. Eu safo-me com o abano nervoso de um leque, perguntando aos meus botões se alguém morre devido ao calor, no Brasil. Lúcifer é o nome deste calorão, na Itália, responde o botão da camisa. E completa, que há muitas e variadas formas de inferno por aí.
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