Logo O POVO+
Lutos e dores desbotados
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Lutos e dores desbotados

Você nem lembra, mas o indefectível vestidinho preto já foi, no passado, roupa de luto fechado. Se antes era sinal de sofrer, hoje é de charme, sofisticação. O preto saiu de cena nos cemitérios, ganhou o gosto nas passarelas e vitrines do prêt-à-porter. Agora, na velocidade dos enterros express, saltamos etapas, engolimos o choro, o luto desbotou
Tipo Crônica
Na foto de Demitri Túlio, uma andorinha alimenta o filhote em um ninho construído em uma calha do teto do castelo de Chenonceau, na região de Loire, França, no verão de 2013.

 (Foto: DEMITRI TULIO)
Foto: DEMITRI TULIO Na foto de Demitri Túlio, uma andorinha alimenta o filhote em um ninho construído em uma calha do teto do castelo de Chenonceau, na região de Loire, França, no verão de 2013.

Vestir-se de preto para ir a um velório ou enterro? Ainda tem quem faça, mas é cada vez mais raro. Não muito longe, no tempo, a geração atrás da minha ainda seguia esse uso, bem codificado. Na época, pela regra, a cor preta era culturalmente obrigatória, indo do cem porcento fechado ao semifechado, a depender do grau de parentesco, mas também do calendário. Hoje, o tempo do luto encurtou, os códigos de antes caíram. Veja o caso da rainha Elizabeth, que perdeu recente o marido, o príncipe Philip? Duas semanas de preto fechado, máscara a combinar, e depois ela apareceu em público, com um vestidinho floral e seu indefectível colar de pérolas. O sol voltou a brilhar no palácio real.

Portanto, o pesado vestiário de luto que cobria, principalmente as viúvas, saiu de moda - da rainha aos simples mortais. Mas, na minha infância, quando minha avó morreu, vestiu-se a família mais chegada toda de preto. Era fechado para os adultos, petit-pois para as crianças. Meu pai, não afeito à cor para o vestiário, colocou na manga da camisa uma tarja negra que, às vezes, mudava-se para a frente do bolso. Quando meu pai morreu, minha mãe cortou os cabelos muito curtos. A dor e o luto não combinam com bonitezas e vaidades. Até onde li e sei, o tempo do luto, na época dos nossos avó e bisavós, era equivalente ao tempo da decomposição do corpo. Abotoados em negras e pesadas roupas na superfície da Terra, enquanto os mortos sumiam, fechados a sete palmos do chão.

 

"Na nossa busca eterna de felicidade e satisfação, sofrimento longo não é mais bem-visto. A dignidade atual é não mais mostra o sofrer, em público. E engolir o choro, como se dizia e fazia, no Ceará"

 

Hoje, com as cremações e enterros expressos, o peso do tempo da decomposição não existe mais. Ficou o costume, ou a ideia dele, esvaziado de sua função primeira. Aliás, essa nova relação com a morte já vinha mostrando a cara. É anterior à pandemia. Se no passado mostrávamos aos outros nossa pena, hoje o trabalho é para sair do luto, o mais rápido possível. Por isso, há tempos, o basiquinho monocromático deixou de significar tristeza, no Ocidente. Agora é moda, sofisticação, glamour. Na nossa busca eterna de felicidade e satisfação, sofrimento longo não é mais bem-visto. A dignidade atual é não mais mostra o sofrer, em público. E engolir o choro, como se dizia e fazia, no Ceará.

Assim, hoje o sofrimento do luto confina-se ao espaço doméstico, aos gabinetes dos terapeutas. Em entrevista a uma mídia local, em Portugal, a terapeuta Cristina Felizardo, fala mesmo em “luto em pausa”, em meio à chuva de problemas, com a pandemia. Se malvisto pela sociedade de consumo, já que sofrimento não é bom para os negócios, ou temporariamente confinado, ou em pausa, o caso é que o luto não desapareceu. Como processo, continua lá, atravessado na garganta - cada um tem o seu. Pois, para além da partida súbita de parentes ou amigos, não temos todos também a lamentar outras perdas? Luto pela vida “normal” de antes, de alguma forma? Ou luto pela saúde de antes? Ou luto por separações? Ou luto por perda de perspectivas e projetos?

Então, a gente faz de conta que não vê, muda o assunto, desvia o olhar, mantém a distância, recalca tristezas. “Vamos aproveitar para almoçar”? diz o filho à família, durante a cremação do corpo do pai. O caso, verídico e recente, ilustra nosso desconforto com as coisas da morte, com as perdas e lutos. Essa vontade de saltar etapa, de passar já a outra coisa, de deixar nos álbuns virtuais os mortos e os pedaços da gente, que ficaram pelo caminho. Mas, seja concreta ou simbólica, toda perda é ferida aberta, leva seu tempo para fechar. Não sei se é possível escapar das dores da alma. Superações com os dias contados, só no marketing real. Para os comuns, como eu, é lamber a ferida para ela cicatrizar. Até poder voltar a vestir outra vez, na cara (e no resto do corpo), um belo pano floral.

Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?