Logo O POVO+
"No viajar de uma viagem", Caetano e eu
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

"No viajar de uma viagem", Caetano e eu

Perdi a chance de ir ao show, mas topei com Caetano Veloso no meu voo. E ali, no lobby do portão 45, já não era a fã de toda uma vida e ele, o artista adorado. Mas, dois passageiros acidentais, em uma encruzilhada qualquer, do mundo globalizado. Por trás das nossas bandas azuis de tecido, só olhares distraídos. E "o batidão do meu coração" a perguntar se o olhar dele me inclui
Tipo Crônica
Na foto de Demitri Túlio, flagrante dos viajantes flamingos, na região de Camargue, no Sul da França, no verão de 2013. Para saber, os flamingos viajam todos os anos, em buscam de lugares mais quentes, para nidificar (Foto: DEMITRI TULIO)
Foto: DEMITRI TULIO Na foto de Demitri Túlio, flagrante dos viajantes flamingos, na região de Camargue, no Sul da França, no verão de 2013. Para saber, os flamingos viajam todos os anos, em buscam de lugares mais quentes, para nidificar

Confusa com as mudanças no check-in e check-out. Enjoada com a mistura de perfumes franceses. Distraída com as imagens de imensos painéis publicitários e suas promessas. Atropelada por centenas de malas e corpos velozes. E um tanto hipnotizada pelo som difuso da mesma voz que anuncia chegadas e partidas. Por gentileza, que a senhora Valentina-de-não-sei-o-que se dirija com urgência ao portão tal, pois a porta do avião vai se fechar em alguns minutos. E lá vai Valentina descabelada e sem fôlego, corredor afora. Corre, Valentina, corre.

E eu andava nisso de seguir viajantes mundiais, enquanto esperava minha vez de embarcar em um certo aeroporto internacional, quando vi surgir, por cima da faixa azul da máscara, aqueles olhinhos vivos que eu conheço tão bem. Caetano Veloso, meu amor, você voa comigo hoje? Voamos, sim. Eu, a mulher Paula e o inseparável amigo violão.

É preciso confessar. Caetano nem tomou conhecimento de mim. Sem clima para fotos, selfs, autógrafos e palavras de amor da fã pelo seu cantor e compositor favorito. A tietagem ficou apenas na minha imaginação. E, quem sabe, na de outros possíveis adoradores do baiano tropicalista, sentados como eu, no portão 45. Pois, naquele imenso lobby, estávamos ele e eu, ao mesmo tempo, perto e distantes, juntos e separados, brasileiros e de lugar-qualquer, únicos e uniformizados, com nossas bagagens, cartões de embarques e poses de passageiros.

Os dois transitando em um não-lugar. O termo é do antropólogo francês Marc Augé, que refletiu sobre estes estranhos espaços funcionais mundializados que são, por exemplo, aeroportos, centros comerciais e estações de trem. Espaços públicos de circulação onde os passantes, como Caetano e eu, transformam-se em anônimas pessoas, sem referências comuns, sem partilhas. Em encruzilhadas.

 

"foi no momento da decolagem que eu vislumbrei, por entre as brechas dos assentos, um tantinho da alma de Caetano. Já não era um viajante qualquer no avião, era o baiano ateu que pensou na Bahia e se benzeu, porque “já viu milagres como eu”. Do meu lugar, a crente imitou o gesto"

 

Direto para a classe executiva, dos vips. Aliás, para alegria das aeromoças que, em alvoroço, revezavam-se em cuidados e histórias, com o cantor. Alguém, ao que parece, “caetaneou” lindas canções, no dia do casamento. Foi? Foi, respondeu a comissária de bordo, sob a emoção do encontro ou da lembrança, quem sabe? Enquanto isso, a massa anônima embarcava no Airbus, que liga Bruxelas a Lisboa, e aboletava-se nas cadeiras latas de sardinha. Porque, embora o Josefa de Óbidos traga na lataria o nome pelo qual ficou conhecida a célebre pintora sevilhana, é um avião como todos os outros aviões. Na continuação do aeroporto, outro não-lugar despersonalizado, estandardizado, desumanizado. Do banheiro na cauda, passando pelas filas de assentos, ao cockpit, igual na economia de espaços, nos layouts, na codificação, nos gestos. E nós, em conversas solitárias com os sinais de apertar e soltar os cintos.

Então, foi no momento da decolagem que eu vislumbrei, por entre as brechas dos assentos, um tantinho da alma de Caetano. Já não era um viajante qualquer no avião, era o baiano ateu que pensou na Bahia e se benzeu, porque “já viu milagres como eu”. Do meu lugar, a crente imitou o gesto. E, pronto, fechou-se a cortina que separa a classe executiva e os pobres mortais da econômica.

Lá de trás, fiquei pensando se Caetano ainda se sente “um errante navegante”, ao contemplar assim do alto o planeta Terra. Ainda vi o artista na hora de pegar as malas, mas de longe. Mesmo assim, deu para matar a saudade. Consolo para os shows, com bilhetes esgotados, que não vou assistir. Depois, já saracoteava de pijama no Instagram, sentindo-se em casa em Portugal, última etapa da turnê europeia.

Parece, o rojão de shows pela Europa aquebrantou as forças de Caetano, agora quase um oitentão (fez 79 anos, em agosto). Foi um ligeiro tremor nas mãos ou aquele olhar distante? Não saberíamos dizer, nós que os seguíamos com os olhos, os discretos fãs do voo TP643. Em Lisboa, logo no primeiro show, a voz não quis seguir o ritmo das primeiras músicas, conta o jornal local. Então, ao público, daquele jeito manso dele, confessou o cansaço, respirou e emendou com Tigresa – “e foi como se abríssemos as persianas para deixar entrar luz”, disse o repórter sortudo.

Enquanto isso, lá fora, mesmo em frente ao Coliseu dos Recreios, lugar dos concertos em Lisboa, alguém projetava em um muro o protesto “fora Bolsonaro”. Que o cantor, por certo, também ouviu gritada dentro da sala. É que razões para ver e ouvir Caetano não faltam. Terapia e curativos para as nossas vidas. Canta, Caetano, “que é pro mundo ficar odara”.

Referências no texto retiradas de músicas de Caetano Veloso: “o viajar de uma viagem”, da música O nome da cidade / “o batidão do meu coração”, da música Gatas maravilhosas / “já viu milagres como eu”, da música Milagres do povo / “um errante navegante”, da música Terra / “odara, da música Odara
Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?