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Aprender a morrer de rir
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Aprender a morrer de rir

Jô Soares sabia disso. O riso é terremoto na alma. E, principalmente, no corpo. Por isso se diz morrer de rir, chorar de rir, rolar de rir, mijar-se de rir, dor de barriga de rir. Corpo que não ri endurece, engessa, vira estátua, gaiola de uma alma murcha
Tipo Crônica
Risada (Foto: GUSTAVO FRING)
Foto: GUSTAVO FRING Risada

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De todos os risos que eu conheço, o da Goreti é o mais escancarado. Riso de verdade, riso genuíno, riso de criança. Riso que sacode, que tira lágrimas dos olhos, que despenteia, que vaza xixi nas calças. Quando minha amiga ri, a gente ri também, mesmo sem saber por que. Pensando melhor, o riso contagiante dela é uma espécie de vírus do bem. Chega incontrolável e em acessos, tira-nos do sério e do real, depois vai passando, morrendo aos poucos, se acalmando. Da boca toda aberta resta agora só um sorriso-fim-de-riso, um sorriso-eco, um sorriso-vestígio. Como a cauda de um meteoro que riscou o céu. Enfim, suspiramos - pacificados, anestesiados dessa felicidade efêmera. Quem, como eu, conhece alguém que se ri assim sabe bem o bem que isso faz.

Porque nas mensagens de WhatsApp, os risos de verdade, as gaitadas, as gargalhadas são agora imagens, emoticons, emojis, onomatopeias. Minha sobrinha, por exemplo, faz como os adolescentes da idade dele que tudo resumem – manda-me “ksksks”. Eu imagino que sejam abreviados kkkkkkkk (a quantidade de “ks” a depender da vontade de demonstrar a explosão do riso virtual). Também eu mando e recebo “hahahaha”. Ou “rsrsrs”, uma versão do “ksksks”. Mas, estas coisas não me convencem. Ando desconfiada da realidade de alguns destes risos zapeados. Pois bem, Goreti não manda nada destas coisas. Ao invés, grava a si mesma em explosões de gargalhadas que se propagam no ar. Do outro lado do mundo, eu com ela morrendo de rir.

Com os olhos, com as bochechas, com a voz, com os lábios, com as mãos e braços, com o ventre, com a bexiga. Ri-se com o corpo todo. Balançando o corpo todo. Contorcendo o corpo todo. O corpo em pequenos choques. Riso assim não mente. Mesmo que, em alguns casos, as razões de tais deflagrações se contestem. Afinal, o que faz rir a um pode ferir mortalmente a um outro. Nesta antropologia do corpo, o professor e escritor David le Breton explica que o riso é invasor, subversivo, excessivo. É por isso que a gente diz que eu morro de rir, que eu choro de rir, que eu rolo de rir. A língua desestruturada, incapaz de pronunciar palavras. Já o sorriso é o contrário. Nasce e morre apenas na face - lá onde somos reconhecidos e nomeados, onde somos identificados.

O eterno Didi(Foto: JADER SOARES - ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: JADER SOARES - ESPECIAL PARA O POVO O eterno Didi

Se o riso subverte os rituais cotidianos, o sorriso não perturba a ordem do mundo. É tranquilo, apaziguante, diz o pesquisador. Mesmo se cheio de ambivalências: sorriso de vergonha, sorriso sedutor, sorriso de desprezo, sorriso de felicidade, sorriso malévolo e até o de quem ri por último. Quantos destes não andamos distribuindo por aí? No livro “O Nome da Rosa”, o escritor Umberto Eco mostra como o riso foi estigmatizado pela Igreja Católica. Na análise de Breton, riso considerado como “falha do corpo” ou “perda de controle”. Já o sorriso era da “ordem espiritual”, uma “ligação a Deus”. Como já li o livro e vi o filme um par de vezes, assino em baixo do que ele diz.

“Situação de contexto”, diz Breton, no podcast da radio France Culture. Você não ri ou sorri de, com ou para qualquer um. “Há hierarquias sociais e culturais”. Ou seja, você intuitivamente se sente autorizado (ou não) a rir ou a sorrir. Quem já não riu de uma piada besta só pra não vexar o outro? E assim a gente vai aprendendo no espelho do outro. Estimulado pela presença do outro. “Sem a visão do riso do outro, o nosso desaparece”. Eu acrescento, entra em perigo de extinção. Ficamos só fingindo kkkkk nos grupos de conversas. Por isso, penso nos risos salvadores da Goreti. Nas “risadas de dar asma” que Jô Soares provocava na mulher e no público. Rir como ato de iluminação. Ou elucidação, como dizia Jô. Rir sempre que der e de todo jeito. De preferência, escandalosamente.

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