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O coração de D. Pedro I para um festim político e a mão de Teresa D’Ávila para um ditador (I)
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

O coração de D. Pedro I para um festim político e a mão de Teresa D’Ávila para um ditador (I)

Os portugueses ficaram aqui saudosos de um coração embalsamado de quase 200 anos. Pois, já está em Brasília a relíquia de Dom Pedro – o IV de Portugal e o I do Brasil. Resto de um defunto - convidado especial do governo Bolsonaro na festa (militar), que se prepara para o bicentenário da independência do Brasil. E esse amor súbito pelo coração real não tem nada de inocente
Tipo Crônica
Coração de Dom Pedro I chega ao país para as celebrações dos 200 anos da Independência. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Coração de Dom Pedro I chega ao país para as celebrações dos 200 anos da Independência.

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Conta a história que Franco, o militar que deu um golpe de Estado na Espanha em 1936, iniciando assim uma terrível guerra civil, não saía de casa para nada sem a mão mumificada de Santa Teresa D’Ávila. A relíquia, a bem dizer, fazia parte dos bens pessoais e da comitiva oficial do ditador – nas viagens e eventos de Estado, mas também nos tempos de férias. Aliás, depois de 40 anos de governo, responsável pela morte de milhares de pessoas, prisões ilegais, torturas e perseguições, o generalíssimo deu o último suspiro em paz, mão na mão esquerda da santa. No leito de morte, sentindo-se abençoado e encomendado. Ele também, de certa forma, santificado.

A mão mumificada de Santa Teresa D’Ávila e o coração embalsamado de D. Pedro I, que Portugal emprestou ao Brasil – diga-se, ao governo Jair Bolsonaro-, para as comemorações do bicentenário da independência, participam do mesmo fenômeno. Mesmo se a primeira é o resto de uma santa espanhola e a segunda do regente do Brasil. Acontece que as relíquias têm uma função particular: revestidas de sentidos que damos a elas, fazem simbolicamente a transmissão de poderes e qualidades. Como se pedacinhos de ossos, mechas de cabelo, ponta de unhas, olhos, dentes, cordas vocais, corações, crânios, pedaços de carne e gotinhas de sangue de seres divinos, admirados e idolatrados bastassem para elevar seus detentores, de carne e osso.

É a força da materialidade desse objeto a que chamamos relíquias. No caso do coração de D. Pedro, o que interessa como ganho político é fazer pontes e links da narrativa do “grande defensor do liberalismo”, que acompanha a figura do imperador, ao discurso do Palácio do Planalto. Como a mão mumificada de Teresa D’Ávila, santificada por uma vida de bondade e humildade, usada politicamente para acompanhar e confirmar atos terríveis do ditador. Bem disse o sociólogo português João Teixeira Lopes, no artigo “Um coração para Bolsonaro”, publicado no jornal Público: “usa-se um morto para aclamar um vivo”. Bolsonaro, peito estufado diante da relíquia, na ilusão de parecer um príncipe, engendrando seu “fico”.

 

"De repente, que surpresa, o feio coração de D. Pedro arranca tantos suspiros! Parece até que não podemos mais viver sem vê-lo! Só Bolsonaro nem liga. No relicário desse amor eleitoral, o que interesse é manter-se no poder. O resto? Ora, sejam mortos sejam vivos, são restos"



Não quero dar ideias a outros governos antidemocráticos e ditadores, mas há ainda uma miríade de pedacinhos de Teresa D’Ávila espalhados pelo mundo, para outros “festins necrófagos”. A mão dela finalmente descansou. Foi devolvida às carmelitas descalças. Está no convento de Merced de Ronda, na Espanha. O olho esquerdo, o pé direito e parte da mandíbula estão em Roma. O braço esquerdo e o coração, na igreja de Anunciação, em Abade Torres. Dedos e pedaços de carne estão distribuídos entre Espanha e outros países. Certa feita, inclusive, um braço de Santa Teresa foi visitar os irmãos carmelitas, em Nova Iorque. Mas, no desembarque, o funcionário do aeroporto viu-se em maus lençóis, já que nos formulários não encontrou nenhuma casa chamada “relíquia”. No impasse, fez um xis na alínea “enlatados e salgados”. E o santo braço entrou assim sossegado em solo americano.

Saibam, estes restos mortais arrastam multidões, rendem polêmicas, dão bom dinheiro em leilões e são objetos de veneração pela Igreja. E de uso político, como agora, no Brasil. Mas, na próxima crônica vamos descobrir que nem sempre estes pedaços de gente andam selados em relicários de ouro e cheirando a formol, como o coração de D. Pedro. Às vezes, a relíquia foi esquecida, no fundo de uma cava. Outras, arrancadas e roubadas do defunto em plena autópsia. Algumas estão em museus eróticos. É que nada se perde de corpos adorados. Já esse coração real, agora que saiu à luz, não tem mais descanso. No retorno ao Porto, breve descanso em cofre e cadeados, para depois ser exposto a cada 5 anos.

De repente, que surpresa, o feio coração de D. Pedro arranca tantos suspiros! Parece até que não podemos mais viver sem vê-lo! Só Bolsonaro nem liga. No relicário desse amor eleitoral, o que interesse é manter-se no poder. O resto? Ora, sejam mortos sejam vivos, são restos.

Foto do Ariadne Araújo

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