O conto de Espírito Santo e o amigo Balsera (ou vice-versa)
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
O conto de Espírito Santo e o amigo Balsera (ou vice-versa)
Há contos que não são de fadas, mas de gentes e de animais de carne e ossos. E em vez de príncipes, são peregrinos com pés cheios de bolhas e patas encravadas. E o final feliz não está lá no fim da estrada, mas agora mesmo, debaixo dessa árvore. Final feliz desses dois é viver, simplesmente. Para pensar nesse Natal
É uma vez, no tempo de agora, numa estrada qualquer de Portugal, um homem chamado Enrique Balsera e seu burro Espírito Santo. Aliás, Espírito Santo não é o burro de Balsera, mas seu inseparável companheiro de viagem. E, dito por ele mesmo, seu melhor amigo. Por isso, o burro não leva o homem, nem a bagagem do homem. Um segue o outro. Juntos já há seis anos.
Com o tempo, por onde foram passando, ganharam os dois chapéus, sinos, enfeites, rosários. Quem os vê bonitos assim nas páginas dos jornais portugueses – mesmo se não se interessam por essa publicidade grátis - não imagina como essa caminhada dupla começou e nem o que fazem por aí, a tangerem lembranças e a coletarem novos saberes.
Balsera é espanhol de origem. Já de Espírito Santo, pouco sabemos. Muitos anos atrás, a vida confortável do homem passou por um desses revezes. De repente, o empresário de sucesso e piloto de testes de carros de luxo sofreu um acidente na estrada e ficou sem andar. “Não foi um castigo”, ele diz, para um jornal local, mas uma “correção de rota”.
Depois de muito penas e de muitas cirurgias, voltou a andar, mas já não era o mesmo. Decidiu mudar a vida, radicalmente. Em vez de ter, ele agora queria sentir. Por isso, botou umas peças de roupa numa mochila, deixou na mesa de cabeceiras o telefone, o relógio caro e o cartão de crédito, calçou as botas de peregrino e saiu porta a fora – queria ir a pé, conhecer todos os lugares milagrosos, no mundo.
Hoje Balsera e Espírito Santo vivem fora das horas, dos planos, das convenções, das contas bancárias. Se chove, abrigam-se nos portais das igrejas. Se faz sol, debaixo de uma árvore. “Não me falta nada, as pessoas vão me dando aquilo que eu preciso”, explica. E aquilo que ele precisa é um copo d’água, uma xícara de café, um pedaço de pão, uma sopa quente ou um banho renovador num chuveiro qualquer.
Mais que isso, se receber, passa adiante, presenteando outro mais necessitado, na estrada seguinte. Espírito Santo – que se banha na chuva e se abastece da grama que a natureza dá – foi, aliás, o único presente que ele aceitou de alguém, neste caminhar por aí a fora.
" Natal não é só ter ou dar, mas também sentir. Tempo para dar sentido para a nossa história cotidiana. Já que, aconteça o que acontecer, Balsera e Espírito Santo serão felizes, para sempre"
Ouvindo falar dos dois, fiquei pensando nos freios e cambalhotas que a vida dá. E nas correções de rotas que podemos fazer. O empresário sofreu um acidente e foi peregrinar. Um burro encontrou um peregrino e foi passear. Uma mulher (como eu) ouviu falar dos dois e aprendeu que toda pequena ou grande transição na nossa vida é estrada, é travessia.
Dá-se o primeiro passo sem se saber onde vai chegar, sem se saber como vai ser a estrada, se os pés vão aguentar o esforço. Mas, a gente sabe que algo vai acontecer. Que algo vai mudar. Que gente muda, em todas as pequenas revoluções pessoais.
Neste Natal, os dois caminhantes estão em casa, em férias com a família, na Espanha. Mas, em 2023, lá se vão eles a atravessar os dias sem correr, sem freios, sem sustos. Parece que é o santuário de Fátima que agora os chama.
Nada de príncipe, nesse conto que conta o viver de um animal-humano e o animal-burrico. Duas representações atuais de um São Francisco – porque o santo, que tanto amava os bichos, não iria achar ruim vir ao mundo seja na pele de um espanhol ou de um burrinho. Dois personagens, despidos de bens, numa outra rota da vida.
Ao invés de escaparem do real, mudaram o real. E isso bem poderia ser a “moral da história” – porque das histórias sempre tiramos lição. E nós, crianças-adultos vamos aprendendo algo com eles, no caminhar das nossas vidas atravessadas? Pois, Natal não é só ter ou dar, mas também sentir. Tempo para dar sentido para a nossa história cotidiana. Já que, aconteça o que acontecer, Balsera e Espírito Santo serão felizes, para sempre.
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