Aos "amigos loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos"
clique para exibir bio do colunista
Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Aos "amigos loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos"
A saudade é como farpa no dedo. O corpo pedindo abraços, as mãos chamando outras palmas de mãos. Até meu umbigo fervilha. Conto no calendário os dias para os reencontros. Pois, sem meus amigos, nem sei quem sou
Foto: Demitri Túlio
Aos amigos, a beleza das borboletas. Chenonceau, França - 5 julho 2013
.
Os dedos das mãos e pés já não bastam. Penduro amigos nos mata-piolhos, nos fura-bolos, nos pais-de-todos, nos seus-vizinhos, nos mindinhos. Também nas falanges e falangetas dos pés. Chamo-os pelos apelidos, invento pedaços amorosos de nomes, faço as chamadas das listas imaginarias e eles respondem presente. Como são mais do que 20, tem quem se agrafe nos lóbulos das orelhas, na ponta do meu nariz, uma dezena faz colar ao redor do meu pescoço. Tenho vaga nos mamilos, no quentinho do umbigo, nos cachos dos cabelos - mas nos cotovelos e nas rodilhas dos joelhos, aviso, só para os mais corajosos.
Finalmente, eu não sei se moram alguns do lado esquerdo do peito. Tenho aí uma válvula defeituosa, não é bom sítio para se ficar. Mas há um punhado deles que eu levo comigo no lugar onde as saudades se escondem. Sinto quando se agitam, cantando lá de dentro as músicas que atravessam cá de fora, folheando comigo velhos álbuns de fotografia, gritando para eu bem ouvir que “esta peça de roupa te dei no último aniversário, lembra? Este livro que tu levas debaixo do braço é a minha cara”. E por aí vão me acompanhando estes diálogos secretos com os que eu amo.
É no tempo que se revelaram estas amizades. Nas separações e reencontros, o milagre destes amores que me ensinam mais do que algo sobre eles, mas muito sobre mim. Sem eles, meus dedos estariam murchos, meus peitos caídos, minhas orelhas surdas, meus cabelos perderiam as raízes, meus joelhos estariam esfolados das minhas quedas. Quando penso neles, e é frequente, penso em cada um, individualmente. Um sorriso, uma tatuagem, uma visita ao hospital, um dia no parque, um café em qualquer pé-sujo – contanto que seja com ele, com ela.
Nenhum deles pediu-me formalmente para ser meu amigo – com acontecem hoje com as amizades pixelares. Todos foram acasos, coincidências, sortes. Como se uma mão invisível tivesse nos tangido para o mesmo lugar e tivesse costurado nossas conversas, nossas ideias, nossos gostos, nossos olhos. Não foram, como se pode constatar, meros suplementos de um encontro banal. Foram experiências que perduram, que resistem à passagem do tempo — às minhas viagens que me levaram para longe, às mudanças com a idade, aos casamentos, às questões políticas. Para mim, são incondicionais.
Bom que se diga, não estamos sempre em acordo. Entre nós, já aconteceram arranca-rabos, confrontos, lágrimas e arranhões. Perdi uma ou duas unhas assim. E doeu. Mas a força da costura, aquele fio de boa qualidade, faz-nos superar – na grande parte do tempo. Nem precisamos de discursos e desculpas. Lemos nos olhos uns dos outros. Estendemos as mãos, na delicadeza do espaço do outro. Declarados bem-quereres. “Vens, tem um lugarzinho guardado para ti no meu colo”. Amizades se provam nos atos, no gesto de abraçar e partilhar ideias, no fazer e querer o bem do outro.
E, portanto, não sou a autora do texto da Internet — nem muito menos Fernando Pessoa, falsamente atribuído a ele — e que termina bem assim: “Tenho amigos para saber quem eu sou, pois, vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril”. Talvez Pessoa não, mas eu gostava de ter escrito isto (não consegui achar o autor), jogado no mundo minhas declarações de amor. Pois, juntos/juntas, o frágil fica forte, o longe está perto e os já mortos, presentes. Amigos de hoje e de ontem, que ainda seremos amanhã.
Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.