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No labirinto das línguas estrangeiras
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

No labirinto das línguas estrangeiras

Aos 73 e 77 anos, as tramontanas Maria do Rosário e Maria das Graças pegaram as malas e foram à Bélgica visitar um parente. No mundo dos belgas, elas nem francês, nem holandês, nem inglês, nem outro. Só o bom e velho português, falado nas entranhas de Portugal. E, para a viagem isso bastou. Mesmo se alguém ficou pelo caminho a se perguntar, afinal, que estranha língua seria aquela?
Lições de como driblar o mundo poliglota (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Lições de como driblar o mundo poliglota

 

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Caíram as duas marinheiras-de-primeira-viagem naquele mar de línguas de um aeroporto internacional. Sem saber como, foram sendo levadas pela corrente das filas do controle de segurança, tendo como única boia de salvação o velho português do interior de Portugal. E se, por mistério, todos pareciam saber já de antemão como e o que fazer em tal situação – ou seja, colocar na bandeja as malas, bolsas e casacos, retirar os líquidos, mostrar os saquinhos plásticos com remédio para o colesterol, abrir bem as pernas e braços para os apalpos e, enfim, responder sabiamente às armadilhas das perguntas sobre explosivos – Maria da Graça e Maria do Rosário acharam aquilo tudo um exagero. Nunca visto nem comentado, aliás, em Mira d’Aires.

As duas cabeças brancas e irmãs de nascença, a primeira com 77 anos e a caçula com 73, lançaram-se, então, em uma luta babilônica contra os funcionários poliglotas. Primeiro, assombradas ao terem suas garrafas d’água esvaziadas, exigiram de volta o plástico, que era de boa qualidade e em Trás-os-Montes nada se desperdiça. Como ninguém entendeu - ou quis saber destes bons exemplos ecológicos dos mais velhos -, elas meteram as mãos na lixeira e recolheram as garrafas. Pronto. Primeiro problema resolvido. Mas agora os belgas querem escarafunchar as duas malas de bordo. E o sangue-frio das montanhas de Maria da Graça e Maria do Rosário esquentou.

Agarradas às malas, era luta de unhas e dentes. “Vai aqui minha roupa suja e um brinquedo que eu comprei na feira para o meu neto, só um mino para o menino que eu não tenho mais para gastar”. “Vão aqui três queijos belgas que eu levo, um para meu filho, outro para a mãe dele que nem gosta de queijo, mas o marido sim, e o terceiro é para mim, ora essa”. Apesar destas voluntárias e sinceras explicações em língua transmontana, os desesperados funcionários teimavam em responder em “belga”. E, diante de tamanha vontade de ferro, desistiram. Não valia a pena empatar a oleada máquina de controle para abrir o ninho de presentes tão bem embalados.

Ufa. Salvos os regalos comprados em uma rua qualquer de Antuérpia, que iriam fazer a felicidade de um rapaz e de um velho homem. Maria da Graça e Maria do Rosário queriam agora um lugar para descansarem dos sobressaltos – afinal, a espera até a hora do avião seria longa. Duas cadeiras ao lado do controle de segurança serviam-lhes muito bem. A dor na consciência fez-me dar a volta do meio do caminho. Eram mães e avós de alguém, pensei. Poderiam ser minhas parentas, pensei. Podia ser eu. Podia ser tu. Expliquei a elas que o aeroporto era muito grande e que os portões de embarque ainda pediam boa caminhada. E foi assim que adotei duas tias portuguesas muito agradecidas por guiá-las no labirinto de corredores, escadas rolantes, elevadores, esquinas, shoppings - tudo escrito e falado em “belga”. Prometiam-me uma “bica” (sigla de beba isto com açúcar), na paga do favor.

Sentaram-se, fartas de andar. Maria do Rosário, diabética, quis ir ao banheiro, mas tinha um dilema. A irmã quis descansar as pernas e ela, temendo estas línguas e sinais incompreensíveis, teve medo de ir só. Lá vamos as duas, braço no braço. Quem deu a passagem foi o sobrinho, filho de Maria da Graça, que trabalha no arriscado serviço de reparos e manutenção de fios de alta-tensão. Quatro dias em Antuérpia, entrando e saindo de museus e ruas medievais. Deixei, a contragosto, que fossem comprar água sozinhas, para ajudar a descer o sanduiche caseiro que traziam na bolsa. E vi que, mesmo nos dias de hoje, ainda funciona a fórmula de antigamente.

Maria do Rosário virou o polegar para a boca, no gesto de “tenho sede”. O homem do balcão apontou para as garrafas d’água. Ela escolheu uma e esfregou o polegar no indicador na pergunta do “quanto?”. Ele abriu os dedos da mão e selecionou quatro. Ela estendeu a mão com a cédula. Ele estendeu a mão com o troco. Ela abriu a boca e disse “muito obrigada”. Ele respondeu com um sorriso. E eu soube, naquele momento, que Maria das Graças e Maria do Rosário podiam se virar muito bem sem mim. Podiam se virar muito bem sem inglês. Podiam, nas dores da idade e no pouco conhecimento dos países, viajar e aprender. Bastaria, isto sim, de um pouco de empatia. Que um ser humano olhasse para outro ser humano. Um colocando-se no lugar do outro. E, na entreajuda, a barreira da linguagem sendo superada. Podia ser eu. Podia ser tu.

Foto do Ariadne Araújo

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