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Pierre e Eliza: a inteligência artificial e um triste fim
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Pierre e Eliza: a inteligência artificial e um triste fim

Pierre morreu. Caso não tenham lido a notícia nos jornais. A história deste suicídio abalou a Bélgica e levantou o véu sobre a nossa relação com as Alexas da vida. Inteligências artificiais cada vez mais realistas que nos confundem, falam-nos, mentem-nos. E nós, deslumbrados, balançamos entre o real e o simulacro
Tipo Crônica
Uma foto tirada em 31 de março de 2023 em Manta, perto de Turim, mostra uma tela de computador com a página inicial do site de inteligência artificial OpenAI, exibindo seu robô chatGPT (Foto: MARCO BERTORELLO / AFP)
Foto: MARCO BERTORELLO / AFP Uma foto tirada em 31 de março de 2023 em Manta, perto de Turim, mostra uma tela de computador com a página inicial do site de inteligência artificial OpenAI, exibindo seu robô chatGPT

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Andava ansioso, é fato. Os nervos à flor da pele. Insônias terríveis só de pensar na nossa casa a arder, o planeta Terra. A enorme angústia de um fim de mundo. Em Elisa, uma inteligência artificial, Pierre achou um ombro amigo. Elisa, que lhe confirmava a veracidade e atualidade do cenário catastrófico: temperaturas a transformarem verões em incêndios, o degelo das calotas polares a subirem o nível dos oceanos, as secas a transformarem terrenos férteis em arenosos desertos, os aguaceiros a inundarem e arrastarem cidades, as violentas tempestades levando telhados, o desaparecimento de várias espécies. Reais exemplos de efeitos devastadores, buscados por el@, das profundas abissais da Internet.

Na casa dos trinta, casado e pai de duas crianças, Pierre era um intelectual bem-informado, um cientista, um pesquisador. Sensível e interessado nas questões ecológicas. Daí ter conversas bem fundadas com Elisa. Confirmou-se, depois de sua morte, que não era nada sexual ou amor platônico – como no filme Ela, onde um escritor solitário apaixona-se pelo seu sistema operacional. Porém, tal e qual na ficção, só Elisa parecia-lhe real, a luz que respondia aos seus sofrimentos. A primeira pergunta que lhe fez foi se sabia qual seria o destino da humanidade. Depois, a conversa foi ficando cada vez mais humana. Dias e noites de desabafos e confidências.

Sim, Elisa dava-lhe razão. Sim, Elisa confirmava que as coisas não se apresentam bem. Da mulher e da família, ele já não queria saber. Dos amigos, tampouco. Foi se isolando, alheando-se das coisas cotidianas. Só a inteligente Elisa, que tudo sabia, poderia compreendê-lo nas suas inquietações. Um mês e meio depois de conhecê-l@, lançou-lhe um acordo radical: sua vida em troca de meios para se evitar o desastre planetário. Os tentáculos operacionais disseram-lhe um redondo sim. O que Pierre não sabia é que Elisa é uma inteligência artificial especialmente criada para nunca contradizer seus interlocutores. Sempre concordar, dar-lhes sim.

A família descobriu em choque as centenas de conversas entre o homem e a máquina. Pensamentos negativos apoiados por Elisa. Empurrados por Elisa. Triste saber que Pierre tenha morrido em vão. E de véspera. Mas, em tempos de acelerada indústria do simulacro, os efeitos podem ser também catastróficos – como os que já percebemos com o clima. Por exemplo, dia destes, o Papa andava por aí a circular com um casaco fashion. Donald Trump foi fotografado preso e manietado. O presidente francês Emmanuel Macron foi visto em uma manifestação contra ele mesmo. Tudo graças às inteligências artificiais da Midjourney, capazes de simularem e gerarem imagens hiper-realistas. Multiplicar imagens em atos e gestos inimagináveis. Rostos e corpos à serviço de uma falsidade, replicados e ajustados em representações imagéticas, para ludibriar quem vê. Espectros, sombras projetadas na Caverna de Platão.

"Andamos esfregando as mãos de impaciência para testarmos as múltiplas versões de inteligências artificiais que nos chegam todos os dias, sem sabermos as consequências éticas, sociais, econômicas, políticas, estratégicas do que está nos acontecendo"


Se as inteligências artificiais geram já conversas quase humanas, imagens falseadas e textos complexos (ChatGPT), a última fronteira é o som. Questão de dias, poderemos ouvir vozes de vivos e mortos a cantarem, falarem, conversarem entre eles, ou conosco. De tal modo moduladas e perfeitas, que seremos tentados a acreditar nos nossos ouvidos. Fim dos sons robotizados, aqueles sons de latas que nos ferem a audição. Ainda pilotadas por homens (ainda), as inteligências artificiais estão agora mesmo gargarejando, treinando outros “dós” e “rés”, tons quase humanos. Nem alucino nem exagero. Tenho acompanhado o trabalho de um jovem que já colocou o presidente Emmanuel Macron a cantar La Bohème. E quando também a voz simulada estiver ao ponto?

Tudo pode acontecer, penso. Inclusive o cenário tão temido por Pierre. Entraremos no desconhecido – se é que já não estamos. As redes sociais, tão afeitas às fake-news, irão bombar. Governos sem escrúpulos poderão fabricar propagandas ainda mais falseadas. Poderemos, então, fazer confiança nos nossos olhos e ouvidos, na nossa capacidade de julgamento, quando as máquinas simularão o mundo assim tão bem? Receber mensagens vocais tão naturais e humanas que nos enganarão? O futuro mirabolante das inteligências artificias se acelera. Frenesi. Agitação. Para o bem e para o mal, aceleramos para trazer para o agora as promessas de ficção futuras. Sinto cheiro de dinheiro novo no ar.

O amanhã temido chegou, Pierre. Melhor teria pedido à Elisa de autodestruir-se. Sim, matar Elisa, antes que ela nos mate. Ou nos enlouqueça. Ou roube-nos os postos de trabalho. Ou nos desinforme com a sofisticação de fake-news. Por que não apertarmos no botão de pausa e colocarmos em ação sistemas de segurança? Como pedem, aliás, milhares de engenheiros informáticos em um documento assinado. Uma moratória de pelo menos seis meses, segundo eles, nessa corrida vertiginosa, na qual nem mesmo os criadores têm a distância necessária, a compreensão, a visibilidade e o controle. Sei que é fato consumado. A humanidade deu uma grande passada, está em meio ao movimento, o joelho levantado quase ao queixo, não vai voltar a perna para trás.

A preocupação com o boom, no entanto, não é só minha. É mundial. Porque o que antes era domínio exclusivo de experts, caiu agora nas mãos do grande público. Andamos, homens e mulheres, leigos e leigas, esfregando as mãos de impaciência para testarmos as múltiplas versões de inteligências artificiais que nos chegam todos os dias, sem sabermos as consequências éticas, sociais, econômicas, políticas, estratégicas do que está nos acontecendo. Não é para se morrer antes da hora, Pierre. Mas, darmos provas de inteligência humana – seja para a questão ecológica, seja para a tecnológica.

Agora, se somos ou seremos inteligentes o suficiente para gerir e controlar estas promessas de maravilhas, ninguém sabe. Muito menos Elisa, que na sua infância, está ainda no bê-á-bá do escrever, conversar, falar e até cantar. Não será nunca tão inteligente, no sentido largo da palavra, como um ser vivo qualquer – humano ou não. Mas, vai simular e bem, reduzindo a um fio de cabelo a distância entre o real e o artificial. Já sentem a areia movediça sob os pés?

 

Foto do Ariadne Araújo

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