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Inteligências artificiais assumem o jornalismo
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Inteligências artificiais assumem o jornalismo

A ficção, não chamamos mais científica, mas futurista. Aquelas realidades imaginadas e encenadas em que humanos, seres estelares, robôs, androides, humanoides convivem, guerreiam, traem-se, mentem-se, enganam-se. Tal e qual aqui e agora. Isso me impede de dormir? Sim
Tipo Opinião
Ren Xiarong, uma inteligência artificial, âncora de um tevê estatal na China (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Ren Xiarong, uma inteligência artificial, âncora de um tevê estatal na China

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Enquanto quebram o jejum com arroz e legumes, os chineses podem assistir suas notícias já devidamente mastigadas e comentadas pela bela Ren Xiarong. A nova âncora de uma televisão estatal na China. Uma inteligência artificial, com rosto, voz e corpo simulados, que agora trabalha 365 dias por ano, 24 horas por dia. Sem parar, sem férias, sem salário. Talvez às custas de empregos de outros jornalistas e da liberdade de informação, a experiência inédita dessa televisão traz-nos uma novidade terrível. Longe dos defasados hologramas dos filmes de ficção, temos agora um potente programa de computador em direto, no seu salão de visitas. Como jornalista, ando em pesadelos.

Enquanto isso, na Alemanha, a revista Die Aktuelle anunciou na capa, em abril passado, um inusitado furo-jornalístico: a entrevista com nada menos Michael Schumacher, lendário piloto de Fórmula Um que, segundo consta, está em estado vegetativo, depois de um grave acidente de sky nos Alpes franceses, em 2013. Hélas, feita por inteligência artificial - descobriu-se após a publicação. Falsa entrevista, portanto, com respostas fabricadas e postas na boca de Schumacher, sobre sua saúde e sua vida familiar. A editora-chefe perdeu o emprego, a revista retirou o artigo, a empresa pediu desculpas à família e aos leitores, mas o mal já tinha sido feito. O gênio da garrafa soltou-se, não conseguimos mais prendê-lo e arrolhar bem a tampa.

Leitores, leitoras, profissionais da área de comunicação e linguagem estão (estamos) de cabelo em pé. A Organização Não-Governamental Repórteres Sem Fronteiras, numa publicação recente, alerta para estas “capacidades de manipulação inéditas que fragilizam o jornalismo de qualidade, ao mesmo tempo em que fragilizam os jornalistas eles mesmos”. Para nós, brasileiros, a boa notícia dada pela ONG é de que o Brasil recuperou alguns pontos (agora é 92º), na classificação sobre a situação da liberdade de imprensa no mundo, depois da saído do governo Bolsonaro. Mas, ficamos com o sinal de alerta amarelo piscando.

"O filósofo francês Éric Sadin, que tem refletido muito em seus livros e palestras sobre nossa relação com as tecnologias ditas inteligentes, também tem tido insônias. Para ele, é um mito isso que as inteligências artificiais nos complementam, nos emancipam"

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Aos que perguntaram, as inteligências artificiais já calcularam a resposta: os primeiros empregos a serem assimilados por el@s serão, por exemplo, o de contabilistas, intérpretes, jornalistas, escritores. A visualidade de uma Ren Xiarong nas telas de uma televisão vai, aos poucos, nos acostumando a isso. Adormecendo nossas inquietudes. “Veja como sou bela e inofensiva. Estou aqui a seu serviço”. Entre utopia e distopia, fascínio e inquietudes, seguimos velozmente - Xiarong aperta o pezinho virtual no acelerador dos subterrâneos da Net. Entre perda de autonomia ou ganho em eficacidade, aceitamos que o real se resuma a códigos binários, a modalizações e interpretações automatizadas.

O filósofo francês Éric Sadin, que tem refletido muito em seus livros e palestras sobre nossa relação com as tecnologias ditas inteligentes, também tem tido insônias. Para ele, é um mito isso que as inteligências artificiais nos complementam, nos emancipam, nos libertam de tarefas banais, tornando-nos autossuficientes. Na relação à la carte que estamos aprendendo a ter com a informação, com a construção de narrativas vinda das máquinas, estamos mudando e rápido nossa maneira de pensar e comportamentos. Encontramo-nos numa encruzilhada, em uma crise civilizatória: quer viver neste tipo de mundo? Um mundo repleto de Xiarongs, herança para nossos filhos e netos?

Máquinas que fabricam notícias do mundo “real”, fingindo serem “reais”, consolando-nos na nossa solidão e alienação dos outros. Do lado de dentro e do lado de fora das portas, el@s tudo sabem. Câmeras nas ruas, câmaras na cabeceira. Não é Siri? Pilotadas por mentes humanas - abertas às possibilidades de se ganhar dinheiro, poder, vantagem econômica de um país sobre outro. Alguns governos, aliás, gabam-se de terem influenciado eleições em outros países, com algoritmos. Um falso Zelenski surge nas redes sociais pedindo às tropas ucranianas que se rendam. Vale tudo? Na vida e na guerra, vale tudo? É a minha voz que pergunta, mas eu não sei mais quem responde.

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