Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Um menino loiro e gentil, banido pelo bando que chutava bolas e lutava aos murros nas ruas. Para eles, Nando era diferente. Para eles, Nando era uma incógnita. Para mim, era amigo das minhas bonecas. E, juntos, brincávamos de casinha
Tão cedo mandaram-me vestir saias e prenderam meu cabelo num rabo-de-cavalo. Tão cedo ensinaram-me a sentar com as pernas cruzadas, sem mostrar os fundilhos. Tão cedo murmuram na minha orelha o que eram as tais coisas de meninas e o que eram as tais coisas de menino. Ganhei bonecas magras e loiras. Nunca carros, fura-chãos, peões, ou bolas endiabradas. Tinha o direito de brincar de casinha, sob olhares atentos. E apenas com o Nando. Porque ele era bem asseado, não trazia catarro seco nos pulmões e gripes mal curadas. Mas, principalmente, porque era calmo como uma menina. E não fazia parte do bando sem camisa, que jogava futebol e pedras no meio das ruas.
Naqueles anos eu já pressentia algo. Algo que separava Nando dos outros rapazes. Algo que atraía Nando para a minha companhia – nós dois, entre retalhos, agulhas e linhas, costurando roupas de bonecas. Mas nem de longe suspeitava das caixas que se fechavam aos poucos sobre nós, no nosso processo de socialização, em cujas tampas vinham gravados os gêneros, os papéis, as normas. Nas caixas de jogos coloridos de azul e rosa, de meninos e meninas, fomos aprendendo a existir e ser aceit@s. Os da rua e os das bonecas, aprisionados num sistema patriarcal, de onde não saímos até hoje.
De onde não ousamos sair, aliás, tão “confortáveis” são as correntes de um mundo onde só há um gênero e uma orientação sexual. Onde as mulheres sabem a caixa delas, e, se não sabem ainda, aprendem na porrada. Ou na bala. Onde o macho heteronormativo guarda seus privilégios. E, na sua masculinidade de alfa, é mais homem que os outros, os betas. Mais fortes e viris, pilares de um mundo caduco e decadente - que estes representantes querem reanimar a todo o custo. O mundo “mais do mesmo”, como disse certa vez o professor português Tiago Rolino, do Centro de Estudo Sociais (CES), da Universidade de Coimbra. Para ele, tudo isso é “masculinidade requentada”. Como um café velho, toldado de borra, de novo e de novo aquecido e servido, bebido a goles intragáveis.
"Ensinados pela escola e pela família, reforçados pelos filmes e séries, pela publicidade, repetidos e divulgados pelas redes sociais, estes comportamentos estereotipados acerca dos homens e da masculinidade engendram perigos e riscos"
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Soube, aliás, que Nando casou-se. Cristão e participante de grupos de jovens, teve os filhos que Deus quis dar a ele e à mulher. Colocou-os na segurança das caixas. Para protegê-los, por certo. Para não serem perseguidos e humilhados, como ele foi. Dentro dos preceitos estabelecidos. Das normas – homem-provedor, mulher-cuidadora. Das caixas glamourizadas e bem embaladas vendidas nos intervalos dos filmes, na televisão, inclusive. Naquele anúncio marca de carro possante e viril, cheirando a gasolina. Naquela marca de produtos de cuidados e higiene masculina: força, beleza, potência, músculos para os alfas. “É de homem!”, diz o slogan. Quem não cumprir as exigências, “sinta-se menos homem”, resume a mensagem no subtexto, o professor.
Ensinados pela escola e pela família, reforçados pelos filmes e séries, pela publicidade, repetidos e divulgados pelas redes sociais, estes comportamentos estereotipados acerca dos homens e da masculinidade engendram perigos e riscos. Para os homens, que têm de provar constantemente sua masculinidade. Ou viverem a exclusão de não estarem na norma. Para as mulheres, vítimas de violência masculina, tratadas como inferiores e propriedades dos companheiros – assassinadas todos os dias, em todos os lados do mundo. Esse ideal de macho normativo é encarnado, por exemplo, pelos Donald Trump da vida.
Um deles agora nas manchetes. Um tal de Andrew Tate, ex-pugilista anglo-americano, chamado pelos jornais de, nada menos, “o rei da masculinidade tóxica”. Um homem que berra sua “beleza” branca. Que torce os músculos e as veias do pescoço. Que grita sua superioridade sobre as mulheres. Que arrasta com ele multidão de seguidores. Homens e mulheres que bebem o velho café requentado. Enquanto nós ficamos aos engoios. Mas, isso fica para a próxima crônica, para entendermos como demonstrações machistas e misóginas, reflexo dessa masculinidade hegemónica e patriarcal, não podem ser mais toleradas. E hoje são um crime. Punível, aliás, com a prisão.
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