Logo O POVO+
O pássaro negro que nos faz dançar e sonhar
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

O pássaro negro que nos faz dançar e sonhar

Da sensibilidade musical de um homem, conhecido 12 séculos atrás, em Córdoba, na Espanha, pelo apelido de Ziryab – o pássaro negro -, saíram ritmos e melodias que mexem com nosso corpo, até hoje. Trazidas pelos mouros, dançamos, como herança de Ziryab, por exemplo, a cuenca, do Chile; a milonga e a chacarera, na Argentina e no Uruguai; e a guajira, em Cuba
Tipo Crônica
Ziryab – o pássaro negro  (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Ziryab – o pássaro negro

.

O que se sabe dele é que tinha voz de melro, era negro e alto, elegante na sua túnica árabe, sabia de cor e salteado mais de 10 mil canções, e amava as artes do bem-viver. No século 9, migrou de Bagdad para Córdoba, na Espanha – a capital que florescia na Andaluzia, sob o califado de Abd al-Rahman II. Na corte do Califa, Abu l’Hassan Ali ben Nafi, mais conhecido pelo apelido de Ziryab – o pássaro negro -, trouxe ideias novas que mudaram hábitos, do salão à cozinha.

Deu dicas de moda – cores claras, como o branco, para os verões escaldantes e cores escuras para o outono-inverno -, substituiu o uso dos copos de metal por copos de vidro, mudou a ordem dos pratos nos serviços de mesa, começando pela sopa como entrada e, depois do prato principal, sobremesas recheadas de mel e nozes. Também introduziu o jogo de xadrez e, no instrumento antepassado do atual alaúde, ele colocou mais uma corda – e deu a ela a cor vermelha.

Abu l’Hassan Ali ben Nafi, mais conhecido pelo apelido de Ziryab – o pássaro negro (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Abu l’Hassan Ali ben Nafi, mais conhecido pelo apelido de Ziryab – o pássaro negro


Estas novas tendências na culinária, no vestir, no mobiliário e mesmo na saúde – ele trabalhava as propriedades terapêuticas da música – foram, aos poucos, transformando o pássaro negro em uma lenda de sua época. Mas, o melhor, ainda estava por vir. Fundou um conservatório de música e, com seus alunos, criou técnicas e gêneros musicais que alteraram o canto árabe-andaluz e deram origem a danças, que, séculos depois, desembarcariam nas Américas.

Em Cuba, a semente que deixou Ziryab está no canto popular guajira. Na Argentina e no Uruguai, nas danças milonga e chacarera. No Chile e na Bolívia, na música e na dança da cuenca. No mundo das redes sociais, ele seria hoje um influencer. Com as suas novas tendências, arrastou fãs entre católicos, judeus e muçulmanos, entre homens e mulheres, ricos e pobres. Todos queriam o mesmo corte de cabelo de Ziryab e experimentar os produtos e os tratamentos do instituto de beleza, criado pelo merlo negro.

Córdoba tem destas coisas. Andamos por aquelas ruelas estreitas e de muros alvos, entrecortados por portas mouriscas, de pátios e pracetas pintados de laranjas maduras, e nos perdemos. Não só no labirinto da velha cidade – que isso é certo e bom de acontecer -, mas também nos véus do imaginário, de onde nos acena um sábio africano com seu alaúde de 5 cordas. A quinta corda vibra com a palheta de penas de águia, outra das suas invenções, e produz notas musicais vindas da alma.

A corda da alma humana, alguém tinha mesma de inventá-la – obrigada, Ziryab. Resta saber se hoje em dia sabemos ainda tocá-la, provocar com ela ondas circulares que vibrem almas. Uma nota ao invés de uma bala. Uma canção ao invés de um grito. E um movimento de dança ao invés de um esgar de dor.

Sugestão de leitura>> para saber mais de Ziryab e desta época e contexto, Kingdoms of Faith: a new history of Islamic Spain, de Brian A. Catlos.

Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?