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Baralhados no mundo dos mortos e dos vivos
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Baralhados no mundo dos mortos e dos vivos

Na sua vontade de tudo separar, o homem murou cemitérios. Para tirar das vistas, talvez, a visão do nosso destino comum. Depois, trancou a entrada com um portão de ferro, sem lembrar que lá dentro colecionam-se páginas da história da humanidade
Tipo Crônica
Túmulo de Allan Kardec, no cemitério Père Lachaise, em Paris (Foto: Wikipédia)
Foto: Wikipédia Túmulo de Allan Kardec, no cemitério Père Lachaise, em Paris

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No terreno da Igrexa de San Martiño de Araúxo, em Lóbios, na Galícia, já do lado da Espanha, um punhado de tumbas velhíssimas contam a história de uma família - a minha. Fui visitar estes ossos já há muito esquecidos, varrendo com a mão a poeira de lápides quebradas, lamentado não ter levado uma flor para os primeiros parentes. Ao cruzar aquele portãozinho enferrujado, peço licença. E olho com respeito as histórias únicas vividas por eles, como se fossem páginas de um livro sagrado. Que sei eu destes mistérios?

Não foi, no entanto, meu primeiro cemitério. Para conhecer os vivos das cidades, tenho a mania de primeiro conhecer os mortos. Com eles, fico a par das histórias, dos dramas, das saudades enfeitadas de flores frescas. Também dos renegados, dos miseráveis, dos esquecidos. De frágeis cruzinhas de madeira ao frio magnífico do mármore, vão compor o documento fundador de um lugar. Desde o abandonado cemitério de Lóbios, ao longínquo e faustoso Père-Lachaise, em Paris - o mais vivo de todos.

Lugar turístico de Paris, o cemitério é famosos e tem o status de monumento histórico, tal e qual a Torre Eiffel, por exemplo. Por ano, três milhões de pessoas circulam entre os passeios arborizados, em busca de defuntos ilustres. A tumba de Jim Morrison é ponto de parada obrigatória para fãs e para selfies. Mas é Allan Kardec que recebe flores. Reza a lenda que o propagador da doutrina espírita teria pedido que se florisse sua tumba em troca de pedidos feitos à sua alma. Aliás, destas lendas urbanas todos os cemitérios são feitos.

Túmulo de Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise, em Paris(Foto: Wikipédia)
Foto: Wikipédia Túmulo de Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise, em Paris

 

O Père-Lachaise recebe ainda hoje cartas do mundo inteiro com candidaturas para um estranho e misterioso trabalho. Consta que, no século 19, uma rica princesa russa teria prometido parte da fortuna a quem morasse por um ano em sua cripta, a fim de velar seus restos mortais, guardados em um caixão de vidro. O rumor propagou-se pelos jornais da época, da Inglaterra aos Estados Unidos, e até na Austrália. Histórias e fatos, verdadeiros ou não, que são o patrimônio imaterial de uma cidade.

Destes, com seus nomes marcados em tabuletas e pedras, somos feitos. Sem eles, não sabemos quem somos. O escritor português José Saramago (1922-2010), ensinou-nos que, nos cemitérios-bibliotecas, homens e mulheres são como livros. Na sua obra Todos os Nomes, ele imaginou um modesto escriturário chamado José que, sem querer, baralhou as tabuletas dos mortos e a dos vivos. Na busca dele sobre como viveu e morreu uma mulher, José foi fazendo um errante caminho em direção ao outro.

Como José, puxamos todos um fio de histórias. Debaixo das asas tristes de anjos que velam lápides, ecoamos a pergunta que já fez o José, aquele de Saramago: quem fostes? E, na esteira, outra pergunta: quem sou, quem és? A imensa biblioteca dos vivos e dos mortos responde-nos: somos a humanidade. Em Lóbios ou em Paris, tanto faz. Somos e seremos os outros dos outros. De passagem na Terra, ligados por histórias, irmãos. Coisa que não é possível de se ouvir nos cemitérios online das inteligências artificiais.

 

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