Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Se o século 20 foi o século da criança, em que se formalizaram os direitos fundamentais de proteção à infância, o que poderíamos dizer do século 21? Ser criança e ter uma vida plena em tempos de guerras, de tiranias, de radicalismos, de mudanças climáticas na Terra, tem sido cada vez mais complicado
Foto: Ariadne Araújo
Barco de papel, um presente de neto-criança
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Tinha já esquecido o que é ter criança em casa. Os pulos na escada, os abraços fofos pela manhã, a birra na hora do banho e de dormir, desenhos soltos na mesa de jantar, iogurtes coloridos na geladeira, um urso panda babado da saliva de beijos. Por lindos 20 dias vivi esta experiência com o meu neto, pensando em como é bom ter a oportunidade de crescer sem sustos, sem medos, sem fome, sem guerras, sem mortes, sem bombas. Não é este o direito de toda criança, neste mundo? Uma vida cheia, no Brasil ou em Gaza?
Para que não descubra o privilégio, cada vez mais raro, de ter uma infância plena, enquanto outras morrem à míngua, a televisão foi desligada, durante as férias. Ficamos com a missão de leitura de um livro infantil sobre a evolução na Terra. Lá pela página 21, logo após a extinção dos dinossauros, ele olhou-me e jogou uma pergunta inesperada. Quis saber por que algumas pessoas não acreditam que evoluímos dos chimpanzés e, ao contrário, defendem que Deus criou Adão e Eva, e os dois povoaram o mundo. Tentei, com palavras simples, explicar a diferença entre os fatos comprovados pela ciência e a crença religiosa, que se sustenta na fé.
“Então, eu sou católico?”, perguntou?. “Porque eu acho que acredito na ciência”. Passamos ao livro seguinte. O assunto tinha enveredado por caminhos profundos. Quem sabe no próximo ano, aos 8 de idade, retomamos o fio da meada. Fiquei, no entanto, surpresa com as interrogações infantis, hoje em dia. A pergunta sobre por que alguns acreditam que a Terra é plana andava já na ponta da língua. Na cauda da reflexão evolucionista, levei-o ao zoológico para conhecer nossos parentes primatas. E os olhos tristes do orangotango, do lado de lá da transparência de um vidro à prova de tudo, deixou-nos silenciosos.
Deu-me como presente de despedida uma caravela feita de papel: o mastro pintado de marron, a vela branquinha e, no casco - “Ben, o pirata”. O pirata e o panda embarcaram em uma nau voadora e atravessaram o oceano, de volta para o Brasil. A casa ficou vazia. Mas encontrei gritos e risos escondidos nos armários, restos dos jogos de esconde-esconde. Sendo avó, recebi dele um revigorante choque emocional. A responsabilidade enorme do que é ser mãe, do que é ser educador, do que é ser um político, do que é ser um adulto, em tempos atuais.
Foto: Reprodução Wikipedia
Alan Kurdi, o pequeno viajante sírio de 2 anos, que morreu após a travessia para escapar da guerra
Em 2015, um pequeno pirata viajante sírio, de apenas 2 anos de idade, naufragou na Turquia. Alan Kurdi e os pais atravessavam o mar Egeu, na esperança de chegar à Grécia, quando o barco carregado de refugiados virou. Fugiam da guerra, da fome, do desespero. A morte do menino chocou o mundo e tingiu as praias das nossas vidas do vermelho da sua camisa e do azul dos seus calções. Quem pode esquecer esta imagem? Esta dor? Esta ferida, na nossa humanidade? Na caravela de papel onde navegam as crianças, o Ben e o Alan deveriam brincar juntos – idealmente.
Mas, nós, velhos orangotangos modernos, andamos perigosamente sem bússola. Convencidos de que somos donos dos mares e das terras, agitamos as águas, fazendo de crianças vítimas colaterais das nossas ondas. Na guerra da Ucrânia, 500 crianças já morreram. Em Gaza, pelo menos 8 mil, até agora (ONU). No Brasil, uma média de 7 mil crianças e adolescentes são mortos de forma violenta, por ano (dados do Unicef). Sabemos que nos originamos dos primatas – ou, se preferir, de Adão e Eva. Mas, em que nos tornamos? Esta é uma boa pergunta para pensar com meu neto.
Quando ele, é claro, perder a ilusão dos barcos de papel.
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