Logo O POVO+
Bernardet e Clark Kent, imigrantes no terceiro mundo
Foto de Arthur Gadelha
clique para exibir bio do colunista

Arthur Gadelha é crítico de cinema do O POVO, ex-presidente da Aceccine e membro da Abraccine. Acompanha as estreias nacionais e os passos do cinema cearense, cobrindo eventos internacionais como Cannes, Gramado, Globo de Ouro e Oscar. Nessa coluna, propõe uma escrita mais imersiva com análises e reflexões pessoais, trazendo também bastidores de filmes, festivais e premiações, além de refletir sobre o papel da crítica de arte no mundo

Arthur Gadelha arte e cultura

Bernardet e Clark Kent, imigrantes no terceiro mundo

A morte de Jean Claude-Bernardet e a ingenuidade do Superman - uma crônica absurda
Tipo Análise
Jean-Claude Bernardet, crítico de cinema (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Jean-Claude Bernardet, crítico de cinema

Na manhã do dia 12 de julho eu estava acordando num sábado de folga, ainda quieto e sem planos para o fim da semana, quando abro o Instagram e uma notícia me congela: a morte de Jean Claude-Bernardet, crítico de cinema, ator e cineasta, aos 88 anos.

Ali me dei conta de que nunca tinha parado para imaginar a morte de Bernardet, apesar do seu estado debilitado nos últimos anos. Estava perdendo a visão, já distante da crítica e da vida pública. Com uma obra extensa e intensa, ele era alguém muito próximo dos meus pensamentos, me preenchia como numa rotina: quando eu empacava na escrita de uma crítica, lá estava eu folheando suas páginas para encontrar um novo rumo.

Bernardet olhava para o cinema como arte, política e mercado, tudo muito junto, numa leitura eletrizante entre passado, presente e futuro, longe das determinações e mais perto das propostas, dos olhares, das dúvidas, da crise. Para o cinema e para todo um país, o que significa a morte de um crítico? A gente fala de quando morrem os diretores, atores e atrizes, mas e quando morrem os críticos?

Quando morrem os críticos, também precisamos fazer silêncio. Naquele sábado não fiz mais nada. Fiquei em casa, pensei nos outros. Quando estive na presidência da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine), entre 2020 e 2024, perdemos dois membros honorários da entidade: José Wilson Baltazar e LG de Miranda Leão. Os dois foram críticos de cinema do O POVO, como hoje eu sou também.

José Wilson Baltazar, crítico de cinema(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal José Wilson Baltazar, crítico de cinema

Encontrei Baltazar diversas vezes em sessões no Cinema do Dragão e ele dizia, orgulhoso, que não havia perdido um filme sequer que entrou em cartaz em Fortaleza desde os anos 1970. Ele passou pelos debates do Clube de Cinema de Fortaleza (CCF), em atividade de 1948 a 1968, pela explosão do Cinema Novo, pela Ditadura Militar e pela chegada da Constituição Brasileira. Em 2020, o tsunami daquela pandemia o levou, ainda nos primeiros meses, de repente. Ele ainda tinha tanto filme para ver.

No domingo, um amigo me chamou para assistir ‘Superman’, blockbuster que restaura mais uma vez um dos personagens mais simbólicos da cultura dos EUA. Lá fui eu. O filme tem uma construção irritante da ingenuidade e da idoneidade clássicas do herói, mas me vi gostando do filme pelo jeito como ele quer fugir do símbolo.

Mesmo que seja constrangedor diante de tudo que o precede, percebo que o diretor James Gunn assume algo importante na colisão com a mitologia ufanista do personagem, que é transformar este super homem num imigrante. Mais que um alienígena, ele é um imigrante - mais do que nunca, sem apoio dos EUA para “salvar o mundo”.

Superman versão 2025(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Superman versão 2025

Quando entrei na topic 703 de volta para casa e sentei para pensar no filme, minha cabeça voltou para o Bernardet. Assim como este Clark Kent de 2025, ele também era um imigrante. Nascido na Bélgica, veio muito cedo para cá e se radicou brasileiro, como a Clarice Lispector ao chegar da Ucrânia.

Enquanto olhava a noite de Fortaleza na cada vez mais escura avenida Washington Soares, me peguei rindo porque aquela era também uma lembrança bastante irônica. Assim como Ariano Suassuna, Bernardet talvez nunca se prestasse ao papel de ir num shopping assistir o novo filme do Superman. Hollywood, afinal, nunca ligou pra gente.

Eu conheci Bernardet justamente quando procurava entender isso, de onde vinha esse nosso consumo tão forte com o cinema dos EUA. Quando li seu livro “Cinema Brasileiro: Propostas para uma História” descobri que um tratado comercial de 1935 foi assinado entre Brasil e EUA para garantir uma “troca” de produtos.

Enquanto o Brasil poderia entrar com produtos de extração e matérias-primas com isenção de taxas e encargos, o país norte-americano foi mais esperto no processo de imposição cultural, incluindo filmes como produtos a serem livremente exportados. Tudo começou lá. Eles já sabiam que a cultura era uma arma. Ainda nem tínhamos uma indústria de cinema e já assistíamos aos filmes americanos. Hoje já temos indústria e até Oscar. Mudou o quê?

90 anos depois desse tratado, num domingo qualquer, eu estava numa sala IMAX entupida de gente para assistir a história de um personagem que surgiu quando Getúlio Vargas ainda era presidente do Brasil. Naquela noite, quando cheguei em casa, nem escrevi nada. Vi fotos do velório do Bernardet na Cinemateca Brasileira e fui dormir, pensando nos tantos outros filmes do Super-Homem que existirão mesmo depois que eu morrer.

Foto do Arthur Gadelha

Quer saber mais sobre filmes e séries? Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?