Veneza: massacre em Gaza instaura crise nos festivais de cinema da Europa
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Arthur Gadelha é crítico de cinema do O POVO, ex-presidente da Aceccine e membro da Abraccine. Acompanha as estreias nacionais e os passos do cinema cearense, cobrindo eventos internacionais como Cannes, Gramado, Globo de Ouro e Oscar. Nessa coluna, propõe uma escrita mais imersiva com análises e reflexões pessoais, trazendo também bastidores de filmes, festivais e premiações, além de refletir sobre o papel da crítica de arte no mundo
Veneza: massacre em Gaza instaura crise nos festivais de cinema da Europa
O que era um assunto ignorado até pouco tempo em grandes eventos como Cannes, Berlim e Veneza, tornou-se indesviável. Na prática, os festivais ainda fogem do posicionamento
Foto: Tiziana FABI / AFP
A diretora tunisiana Kaouther Ben Hania segura um retrato da falecida menina palestina Hind Rajab, durante o tapete vermelho do filme "A Voz de Hind Rajab", apresentado em competição no 82º Festival Internacional de Cinema de Veneza, no Lido de Veneza, em 3 de setembro de 2025.
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Nesta semana, a situação trágica na faixa de Gaza tomou o tapete vermelho do 82º Festival de Veneza, o festival de cinema mais antigo do mundo. Mesmo que o presidente do júri, Alexander Payne, tenha desviado de uma posição por “não estar preparado”, o assunto se fez ecoar alto.
Antes mesmo de começar, um abaixo-assinado com centenas de artistas pedia posicionamento do festival contra o genocídio em curso e exigia a ausência de atores que apoiam abertamente a invasão israelense, como Gal Gadot e Gerard Butler.
Na estreia de Bugônia, estrelado por Emma Stone, o grego Yorgos Lanthimos foi ao tapete com um broche da Palestina. No fim de agosto, milhares protestaram às margens da cerimônia, sendo tolhidos até por uma tropa da polícia.
Porém não dá mais para esconder. Vencedor do Grande Prêmio do Júri na premiação deste sábado, 6 de agosto, A Voz de Hind Rajab se tornou favorito absoluto de público e crítica quando foi exibido na competição e aplaudido por mais de 20 minutos.
De repente, a tão proibida bandeira da Palestina estava sendo esvoaçada dentro do grandioso Palazzo Del Cinema, obra construída sob o regime fascista de Mussolini nos anos 1930.
Dirigido pela tunisiana Kaouther Ben Hania, a trama é inspirada na história real de Hind Rajab, criança de seis anos que foi vítima de um ataque em Gaza. “Esta história não é apenas sobre Gaza. Ela fala de um luto universal. E acredito que a ficção é uma ferramenta mais poderosa do que o barulho das notícias de última hora ou o esquecimento da rolagem da tela. O cinema pode preservar uma memória. O cinema pode resistir à amnésia”, declarou a diretora.
(Foto: Stefano RELLANDINI / AFP)Policiais enfrentam manifestantes no final de uma marcha em apoio a Gaza e ao povo palestino no Lido de Veneza durante o 82º Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 30 de agosto de 2025.
(Foto: Stefano RELLANDINI / AFP)Pessoas a bordo de um barco agitam bandeiras palestinas ao chegarem para participar de uma manifestação em apoio a Gaza e ao povo palestino no Lido de Veneza durante o 82º Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 30 de agosto de 2025.
Outro festival que se prepara para essa discussão é o 73º Festival de San Sebastian, na Espanha, que acontece no final de setembro. No último dia 5, um dia antes da premiação em Veneza, os organizadores publicaram uma nota tão contundente que faz todos os outros eventos clássicos da Europa parecerem novatos.
“Do mundo do cinema, da cultura em geral, sempre quisemos aprender as lições dos horrores do século XX que o conhecimento da história nos deixou, para que nunca mais rimem tão terrivelmente. Portanto, é uma obrigação hoje condenar a violação sistemática e programada dos direitos humanos, o genocídio praticado pelo governo de Netanyahu”, diz diretamente, sem maquiagem.
Pedro Almodóvar, grande diretor do cinema espanhol, também não poupou palavras ao apelar que o Governo da Espanha cortasse relações diplomáticas com Israel. Ele já havia assinado outra carta pedindo posicionamento no Festival de Cannes, na França - lá, a história também mudou um pouco.
“Ela deveria estar aqui”, disse Juliette Binoche sobre Fatma Hassona
O viés político dominou a cerimônia de abertura deste ano, que começou com Juliette Binoche homenageando Fatma Hassona: “Ela deveria estar aqui”. Fotógrafa protagonista de um dos documentários da competição, Fatma foi morta por um míssil israelense em meio ao conflito em Gaza, o que surpreendeu a própria organização do evento que havia anunciado o filme na seleção um dia antes do crime.
Isso soaria inimaginável em anos anteriores. Em 2024, como as manifestações políticas estavam proibidas no tapete vermelho, a atriz americana Cate Blanchett desfilou com um vestido preto com detalhes verde e branco - em contraste com a cor do tapete, a bandeira da Palestina surgiu nas fotos como um protesto silencioso.
Institucionalmente, a direção desses eventos tenta construir uma posição de equidade pelas beiradas, sem ir direto ao ponto. Em 2024, enquanto Gaza e Ucrânia estavam em guerra, o cartaz do 77º Festival de Cannes trouxe cena de Rapsódia em Agosto (1991), do japonês Akira Kurosawa, trama sobre uma vítima do bombardeio de Nagasaki. Em nota à imprensa, o festival afirmou que o cinema podia “clamar por união, apaziguar traumas e ajudar a reparar os vivos”.
Foto: Tiziana FABI / AFP
O diretor Jim Jarmusch posa com o Leão de Ouro de Melhor Filme recebido por Father Mother Sister Brother, após a cerimônia de premiação do 82º Festival de Cinema de Veneza em 6 de setembro de 2025 no Lido de Veneza.
Em Veneza deste ano, a entrega do Leão de Ouro a Father Mother Sister Brother, do americano Jim Jarmusch, está sendo interpretada pela imprensa como um movimento antipolítico por parte do júri presidido pelo também americano Alexander Payne.
O filme vencedor, inclusive, agora vinculado à derrota do filme sobre o conflito palestino, enfrentará outra controvérsia no futuro: a obra está sob os direitos da Mubi, streaming que vem recebendo pressão da classe artística para abandonar fundos financeiros de Israel que o mantém.
No Festival de Berlim em 2024, protestos que exigiam cessar-fogo em Gaza causaram grande rebuliço e fazendo a classe política da capital alemã mascarar a discussão ao chamá-la de “antissemita”. Nesta mesma edição o evento exibiu o palestino Sem Chão, documentário sobre a expulsão de uma comunidade na Cisjordânia pelo exército israelense, seguindo sua trajetória até vencer o Oscar de Melhor Documentário em março.
Os festivais europeus de cinema até tentaram fugir dessa briga, colocando-se num pedestal de igualdade e promotor da paz, mas essa pose se tornou insustentável. Gaza precisou encarar o desastre em seu limite para que o poder da Europa fosse perturbado - se essa mudança passa pelos governos e pela sociedade, também passa pelo cinema, uma arte que sempre quis olhar o mundo e nos dizer o que está acontecendo. O cinema está dizendo. Quem está ouvindo?
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