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Comunidade Ntu-Noun-Kalunga: a vida na sua plenitude nas cosmopercepções africanas
Foto de Bas'llele Malomalo
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Nascido na aldeia Idumbe, RD Congo, é Filósofo, Teólogo e doutor em Sociologia, Terapeuta da Espiritualidade Africana, ativista dos direitos do Ubuntu-Maat-Kalunga e diretor internacional da Comunidade Madinatu Munawara. É docente de graduação nos cursos das Relações Internacionais, Ciências sociais, Mestrado Interdisciplinar em Humanidades (MIH) do Instituto de Humanidades e Letras (IHL) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), docente colaborador no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais e Cidadania (PPPSC) da Universidade Católica de Salvador (UCSAL), coordenador do Grupo de Pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimentos, sociedade civil, desenvolvimento e cidadania global, pesquisador associado do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-UNESP); da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano, Pesquisador e membro do Comitê Internacional da Cadeira da Unesco Educação Transformadora, Democracia e Cidadania Mundial, da UQO, Canadá e expert da plataforma Harmony With Nature/ONU

Comunidade Ntu-Noun-Kalunga: a vida na sua plenitude nas cosmopercepções africanas

Professor congolês Bas´lelle Malomalo convida o leitor a um passeio pelas origens da vida tendo como base a filosofia africana
Tipo Análise
Desenho do mito da criação do Egito (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Desenho do mito da criação do Egito

 

Quero estrear essa minha coluna com um tema que considero como o princípio dos princípios: a origem da Vida ou de Tudo-o-que-existe. Farei isso, como em outros textos que hei de publicar aqui, a partir do paradigma da Filosofia africana. As questões que me colocam para me debruçar nesse tema são: O que é a Vida? Qual é a origem da Vida ou da Existência?

Respondo afirmando que os povos africanos foram os primeiros seres humanos a responder a essas perguntas e outras que abordaremos nas próximas publicações. Nos textos filosófico-cosmológicos dos povos negros do Egito antigo, por exemplo, que datam pelo menos três mil anos antes de Cristo, aprendemos que o Noun é o princípio vital a partir do qual veio à existência Tudo o que existe. Concebiam essa Força como a Água abissal. Trata-se de um princípio que existiu bem antes do Universo que as ciências astrológicas ou a astrofísica, sejam elas africanas ou de outros povos, investigam.

O Noun é tido como a Força-Divina-Ancestral-Primordial, Andrógena e Incriada. Comporta em si os próprios germes de sua Auto-Criação. Só que a sua Força de Auto-gestação lhe impera para uma segunda Força que é a gestação de Tudo-o-que-existe, a Vida-Plena, que denomino de Comunidade-Ntu .

Théophile Obenga , filósofo de Congo Brazza-Ville, disse que o Noun é da “ordem do que é” (Ontologia), ou seja, da Existência, em complementaridade com Maat, Verdade-Justiça, que é da ordem Ética. Uma Ética cósmica, pois participam na sua construção igualmente seres particulares não humanos: Divindades, Ancestrais e todos seres que habitam o Universo-Natureza. Tem um belo texto de Obenga sobre o que ele denomina de “Economia da Natureza” na perspectiva do Egito negro. Eu preferiria chamar de Origem do Ntu ou Vida.

 

"O termo filosófico dos povos Bakongo Kalunga nos leva a compreender ainda quanto é complexo a explicação africana da origem da Comunidade-Ntu, da Ontologia e da Ética africanas."

 

Retiro a palavra Ntu das bibliotecas, entenda-se com isso culturas, dos povos do centro e sul e do continente africano. Para falar da Ontologia Africana dos povos bantu, Alex Kagame fez um belo exercício da filosofia linguística e cultural tratando do sufixo Ntu conjuntamente com os prefixos que lhe acompanham em língua Kinyarwanda (falada pelos povos Tutsi da sua etnia-nação de Rwanda), e chegou nessa conclusão: há quatro categorias que define a Ontologia africana bantu que passo a citar e traduzir:

Ha-Ntu – Princípio que caracteriza o tempo-espaço
Ku-Ntu – Princípio que caracteriza as modalidades
Mu-Ntu – Princípio que caracteriza o gênero humano
Ki-Ntu – Princípio que caracteriza as coisas não humanas

Mogobe Ramose , filosofo sul-africano, argumenta em seus escritos que Kagame teria se esquecido de um quinto princípio que está na base da Ontologia e Ética africana: Ubu-Ntu, que ele traduz por Ser-Sendo. As quatro categorias citadas anteriormente seriam a manifestação particulares do Ser. Disse ele, o prefixo Ubu- é a marcação do Movimento. É isso mesmo: a ideia de que para a Filosofia africana, Tudo o que veio à Existência, a Comunidade-Ntu ou Vida-Plena, está sempre em MovimentAção. Já o sufixo –Ntu, como falamos, significa Força vital, Energia, igual ao Noun dos Egípcios antigos, o Kalunga dos bakongo, ou ainda o Axé entre os povos yorubá.

O termo filosófico dos povos Bakongo Kalunga nos leva a compreender ainda quanto é complexo a explicação africana da origem da Comunidade-Ntu, da Ontologia e da Ética africanas. Pois, Kalunga é termo um plurissêmico também: pode significar o princípio originário da Vida, a Realidade total na sua plena manifestação, a Vida como princípio que contém a vida e a morte, as profundezas do Mar; pode se referir igualmente a Divindade como Força Criadora, Ser Supremo, chamado de Nzambi.

Preciso aqui recorrer aos escritos de Fu-Kiau , Tigana SantÁna, Faik-Nzuji para tratar desse assunto. Acredito que o Cosmograma Bakongo (Diekenga) seja mais pedagógico. Todavia, devo alertar que alguns Dikenga receberam interpretações antropológicas . Vão na mesma linha daquelas que acham que Ubuntu é Humanidade. Tenho defendido que Bo-Muntu seria a Humanidade, Tornar-se-Gente, Devir-Pessoa. Para tanto, recorro a filosofia cosmológica africana. Nesse sentido, Ubuntu ou Kalunga significa Ontologia Africana. Não é Humanidade, nem Deus. Nzambi, Divindade e os Ancestrais são somente uma parte de Kalunga ou Ubuntu.

Faik-Nzuji, congolesa de etnia-nação Kongo e estudiosa da cultura africana, explica o símbolo de Kalunga afirmando que o pequeno signo em cima representa Kalunga, o Criador em si; o pequeno signo abaixo representa o homem; o pequeno círculo à esquerda representa o sol e o semi-círculo à direita representa a lua; os seis signos inscritos na linha vertical central representam as gerações que precedem ao indivíduo e que o ligam ao seu Criador.

 

Primeira figura do artigo (Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Primeira figura do artigo

 

Além disso, para Faik-Nzuji, a linha vertical, no centro, marcada de seis pontos, aponta a estrada que leva a Deus. Os pontos inscritos nos pequenos quadros representam as criaturas de todas as espécies que existiram, existem e a porvir. Esses pequenos quadros estão moldados por uma linha continua que as engloba e volta sobre ela mesma. Não tem nem início nem o fim: é o infinito, a eternidade. Os seis pontos inscritos na linha vertical representam as gerações que nos ligam à origem. O desenho do símbolo Kalunga é em geral acompanhado de um recital mítico explicando porque o sol aparece cada dia, porque a lua volta cada vinte e oito dias e porque o ser humano conhece a morte.

A minha crítica às intepretações de Faik-Nzuji, mesmo sendo ela uma mukongo, é a forte influência que ela sofre da Antropologia ocidental e do cristianismo que lhe dificultam nos trazer uma interpretação não generificada e cósmica de Kalunga. Para superar essas limitações interpretativas, proponho recorrer as leituras de Fu-Kiau e Tigana Sant´Ana, dois intelectuais negros, ambos pertencentes à cultura kongo. Sendo o primeiro nascido no território Kongo da RDCongo e o segundo, na Bahia. Não são somente intelectuais negros, mas vivenciam a espiritualidade kongolesa.


Figura 2 do artigo (Foto: Acervo do professor Bas´Elle)
Foto: Acervo do professor Bas´Elle Figura 2 do artigo

 

Interpreto a Figura 2, em parte, a partir dessa afirmação de Tigana: “Os bakongo dizem, principalmente, Kongo Kalunga, Nzambi Ampungo, Nzambi Mpungu, Mpungu Tulendo, para se referir à energia originária que reúne tudo o que existe, surgida a partir de si mesma; energia que completa a si; quintessência da vida (moyo) e do universo (luyalungunu). Afirma o pensador congolês Bunseki Fu-Kiau tratar-se essa energia originária do “sim” (yinga) como presença. Uma pessoa kongo diz kalunga, quando se quer dizer presente. Kalunga é, portanto, a dimensão integral de ser (kala). Ainda, segundo Fu-Kiau em African cosmology of the bantu-kongo — principles of life and living: “O mundo, [nza], tornou-se uma realidade física, flutuando em kalunga (na água infinita dentro do espaço cósmico)”. O caráter líquido de kalunga justifica a sua acepção como “oceano” em kikongo. Mesmo a ideia de uma justificação está em kalunga, haja vista a palavra alunga ser aquilo que é “justificado” ou “completo”” .

 

"Uma maneira simples de explicar tudo o que acabei de apresentar anteriormente é dizer que a cosmopercepção africana é composta de dois Mundos: o Mundo-Visível e Mundo-Invisível."

 

De Fu-Kiau e Tigana aprendemos que Kalunga é a força ontológica matricial. Kalunga, para mim, seria a Comunidade-Ntu, a Vida-Plena-em-Movimento, o Noun-Maat dos antigos egípcios, a Comunidade-Orun-Aiye dos yoruba, ou seja, Ubu-Ntu: o Ser-Sendo, que o filósofo congolês Tshamalenga Ntumba denomina de Realidade total, processual, multiforme e global. Chamo isso do Nós-Cósmico. Esse é composta de três Comunidade-Particulares-de-Vida: Comunidade-Sagrado-Ancestral, Comunidade-Universo-Natureza e a Comunidade-Bantu.

Uma maneira simples de explicar tudo o que acabei de apresentar anteriormente é dizer que a cosmopercepção africana é composta de dois Mundos: o Mundo-Visível e Mundo-Invisível. Na realidade o que se quer explicar é a Ontologia africana, a Realidade processual africana. Essa é composta de duas Realidade complementar e interdependente: Orun-Aiyé, Noun-Maat, Mundo-dos(as)-Ancestrais (Comunidade-Sagrado-Ancestral) e Mundo dos Vivos (Comunidade-Universo-Natureza e Comunidade-Bantu).

Sendo que esse último mundo se origina do primeiro e retorna a ele de uma forma processual e cíclica. Viver, não somente para o ser humano mas também para todos seres viventes, inclusive as divindades, ancestrais e seres do universo-natureza, nesse sentido significa buscar sempre o Equilíbrio, isto é saber Yingar/Gingar na linha do Tempo-Espaço de Kalunga. O que quer dizer saber se equilibrar na linha de Kalunga que une o Mundo-Visível com o Mundo-Invisível. Ter a sabedoria de marcar a presença no mundo: Kala. Na Filosofia africana contemporânea o tema de Yingar, portanto, nos leva ao debate de “Estar com a Vida ou a Comunidade-Ntu”. Voltarei sobre esse assunto e outros nas próximas publicações.

Foto do Bas'llele Malomalo

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