Repórter do O POVO+ especializada em ciência, meio ambiente e clima. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é premiada a nível regional e nacional com reportagens sobre ciência e meio ambiente. Também já foi finalista do Prêmio Einstein +Admirados da Imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar na região Nordeste
As cientistas Ana Bonassa e Laura Marise, do canal Nunca Vi 1 Cientista, foram condenadas por desmentir um "terapeuta" que dizia que vermes causam diabetes
A onda de influenciadores e profissionais de má-qualidade falando sobre saúde nas redes sociais é um dos maiores perigos da vida virtual. Blogueirinhas demonizando frutas, pão e leite de um lado;do outro, coaches indicando jejum intermitente a torto e a direito. E no canto mais obscuro, “médicos” espalhando mentiras como se juramento profissional fosse só uma promessa política.
Agora, parece que disseminar falsidades e colocar a saúde da população em risco é menos criminoso que desmenti-las. Isso mesmo: a justiça condenou as divulgadoras científicas Ana Bonassa e Laura Marise, do canal Nunca Vi 1 Cientista, por danos morais contra um “terapeuta” que usou suas redes sociais para dizer, falsamente, que vermes causam diabetes e vender um protocolo de desparasitação.
O crime das cientistas foi corretamente instruir as pessoas de que essa afirmação não tem nenhuma base, usando um print da postagem do homem publicada em um perfil público. Assim como falta vergonha para sair espalhando mentiras tão perigosas, o acusador achou de bom tom processar as pesquisadoras por isso, afirmando que elas teriam “extrapolado a liberdade de expressão”.
O pior de tudo é a justiça, com J bem minúsculo nesse caso, dar ganho de causa para o homem. O juiz entendeu que propagar mentiras nas redes sociais e colocar a vida de pessoas em risco está totalmente dentro do aceitável. Ruim mesmo é alertar a população. Que tipo de liberdade é essa?
Não vou citar o nome do tal médico em respeito à segurança jurídica das cientistas. A condenação foi em primeira instância, mas Laura e Ana decidiram não entrar com recurso por não terem mais como custear o processo — depois de serem obrigadas a pagar uma multa por danos morais.
Cito o nome delas para recomendar que todos aqui acompanhem o trabalho essencial do Nunca Vi 1 Cientista. Elas explicam de maneira didática e com muitos dados o porquê das afirmações espalhadas na internet serem mentira, em uma tentativa de impedir que pessoas saudáveis fiquem doentes e que pessoas com doenças sérias não larguem seus tratamentos cientificamente comprovados por curas milagrosas vendidas por charlatões.
Esse está longe de ser o primeiro processo enfrentado por Ana e Laura, mas é o primeiro que perderam. Divulgadores científicos do Brasil inteiro têm enfrentado o assédio judicial de “médicos” de Instagram que abusam do sistema judiciário para censurar quem realmente se importa com a saúde da população.
Lembro de uma série sobre câncer publicada no canal, na qual em cinco vídeos a Laura explica direitinho o que é o câncer e como é o tratamento da doença. Em um deles, a cientista ficou emocionada ao advertir que a
dieta cetogênica
"Um tipo de dieta restritiva que limita a ingestão de carboidratos. Os carboidratos são uma das principais fontes de energia para o corpo."
no processo de tratamento do câncer pode matar, após contar a história de uma conhecida que morreu depois de confiar em uma médica que vendeu, por R$ 15 mil mensais, um “protocolo alimentar” restritivo como cura.
O precedente desta condenação absurda estabelece que está tudo bem ganhar dinheiro às custas da vida dos outros e coloca em cheque a confiança no sistema judiciário. Nessa onda, os comunicadores de ciência ficam cada vez mais receosos de dar nome aos charlatões, que por sua vez estão perfeitamente protegidos por um sistema judicial que ignora pareceres técnicos e a segurança coletiva.
No Brasil, é essa a sina de pessoas comprometidas com a ciência, a verdade e o bem-estar da população. Enquanto é impossível converter os charlatões (convenhamos, não é falta de acesso à informação, é má-fé mesmo), os comunicadores fazem o trabalho hercúleo de tentar letrar cientificamente a população para que ela saiba como fugir dos golpes.
A decisão fez com que a classe de divulgadores científicos, que lutam por formas de profissionalização e de reconhecimento do trabalho prestado por eles, questionasse ainda mais como se proteger do assédio judicial. O biólogo Roberto Takata até criou um formulário para recolher dúvidas jurídicas de divulgadores. A bem da verdade, a classe precisará de redes de apoio jurídico especializadas e a custos baixíssimos, considerando que boa parte destes cientistas vive de bolsas de pesquisa ou do rendimento com as redes sociais.
Do lado de cá, o que com certeza podemos fazer é ficar revoltados e nos esforçar para evitar a propagação da fama desses charlatões. Converse com sua família, instrua-os, coloque uma pulguinha atrás da orelha… E, claro, apoie quem está comprometido com a verdade e com a vida.
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