O Zé Gotinha, maior símbolo da campanha vacinal brasileira, passou por anos difíceis durante a pandemia de Covid-19 e deve enfrentar ainda muitos outros amargores pela frente. O assunto vem à tona também pela aplicação da vacina bivalente contra o coronavírus no País, a partir de 27 de fevereiro.
Afinal, a hesitação vacinal infantil — ou seja, a tendência dos pais cogitarem não vacinar seus filhos — cresceu 56,3% no Brasil.
O dado é da pesquisa A survey of COVID-19 vaccine acceptance across 23 countries in 2022, publicada na revista científica Nature Medicine, no dia 9 de janeiro. O estudo está há três anos acompanhando 23 mil respondentes de 23 países, entre eles o Brasil, sobre a aceitação de vacinas contra a Covid.
Ao considerar a hesitação vacinal em geral, não só dos pais em relação aos filhos, a taxa de relutância brasileira é de 12,8%. A aceitação às vacinas é de 87,2%.
Uma das questões perguntadas pela pesquisa era em relação à tendência dos pais em vacinar os filhos. Em julho de 2022, a taxa de hesitação brasileira foi de 13,6%, número maior do que o registrado em 2021, implicando um crescimento de 56,3% na indecisão ao vacinar as crianças.
A hesitação é muito maior entre os pais que também não se vacinaram: 83,7%, aumento de 30% em relação ao ano anterior. Mas, curiosamente, o maior crescimento está principalmente nos pais que tomaram pelo menos uma dose dos imunizantes, entre os quais a dúvida em proteger a crianças aumentou 92,9%, alcançando a taxa de 5,4%.
Ao olhar as parcelas totais, não os crescimentos, o cenário parece mais tranquilo do que realmente é. Afinal, cinco por cento não é nada, certo? Mas a pergunta deveria ser: o que aconteceu para os adultos estarem tão reticentes em se vacinar e vacinar as crianças agora?
De acordo com os autores do artigo da Nature, os motivadores da hesitação vacinal estão totalmente relacionados aos contextos de cada país analisado, mas praticamente sempre incluem baixa escolarização, desconfiança na ciência e nos governos e desinformação.
Os mesmos aspectos influenciam na indecisão para tomar as doses de reforço contra a Covid-19, que devem ser anuais para grupos prioritários, já que a vacina entrará no Programa Nacional de Imunizações (PNI).
No Brasil, o negacionismo com a Covid-19 definitivamente é um dos principais culpados. “A tecnologia das vacinas existe há mais de 200 anos, e ao longo desses dois séculos sempre tivemos negacionistas”, comenta o médico Alcides Miranda, professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No entanto, as circunstâncias atuais são bem diferentes das de epidemias anteriores. Na visão de Alcides, o cenário é de duas vertentes negacionistas: aquela com direcionamento político-econômico e aquela de negação à ciência.
Enquanto a recusa à ciência é praticamente generalizada em outros aspectos além da saúde — como o terraplanismo e a rejeição às mudanças climáticas —, o político-econômico é o famoso “o Brasil não pode parar”.
Em março de 2020, esse foi o mote de uma campanha da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) defendendo o fim do isolamento social implementado em vários estados do País no combate à pandemia. A campanha foi apagada após a Justiça do Rio de Janeiro determinar a suspensão dela — a Secom chegou a publicar nota negando a existência das peças.
De qualquer forma, essa foi a ideia disseminada pelo governo federal e pelo mercado para diminuir a gravidade da doença e obrigar os trabalhadores a permanecerem ativos mesmo sem a existência de uma vacina até então. “É um negacionismo da boca pra fora. Esses empresários até se vacinaram depois”, comenta Alcides, aproveitando para pontuar a curiosidade de ver o cartão de vacina do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) atualmente em sigilo de 100 anos.
Por isso, mais do que acesso ao conhecimento, os valores, os posicionamentos morais e as visões políticas também influenciam diretamente na atitude das pessoas sobre as vacinas. Essa é inclusive uma das conclusões da pesquisa Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia, conduzida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia (INCT-CPCT), com sede na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Publicado no dia 15 de dezembro de 2022, o estudo identificou que 13% dos brasileiros entrevistados não pretendem tomar doses de reforço contra Covid-19, enquanto 8% dos que têm filhos afirmaram que não pretendem vaciná-los também.
“A chance de recusar vacinas aos filhos é muito maior entre os homens e cresce entre as pessoas que declaram que ‘o crescimento econômico e a criação de empregos devem ser prioridades máximas, mesmo quando a saúde da população sofra de algum modo’”, pontua o sumário executivo do levantamento.
Mas nem tudo cai nas mãos do negacionismo. Desde 2016, a cobertura vacinal geral do Brasil vem caindo, com uma queda acentuada em 2018, relembra a mestre em Epidemiologia Bianca Cata Preta, pesquisadora do Centro Internacional de Equidade em Saúde e consultora científica do comitê para enfrentamento da covid-19 da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
“A cobertura de vacinação brasileira sempre foi um exemplo no mundo todo”, comenta Bianca, destacando o pico em 2015, quando a vacina contra a poliomielite atingiu 98,29% de imunização. Muitas outras vacinas incluídas no PNI alcançaram a taxa de 90%, mas desde 2016 mesmo ultrapassar os 80% é um desafio.
“A relutância em vacinar é um fenômeno complexo por si só”, afirma. A hesitação varia entre os tipos de vacina, mas geralmente são influenciados por três fatores.
Primeiro, a percepção de que a vacina não é mais necessária, já que quanto mais elas funcionam, menos vemos as doenças. Isso é chamado de complacência. Outro aspecto é a confiança no produto ou mesmo nos governos e nos profissionais da saúde. Por último, a conveniência, ou seja, quão acessível é o serviço de vacinação.
“A relutância em vacinar é um espectro. A pessoa pode se vacinar e mesmo assim ser relutante. E a pandemia deixou isso muito em evidência”, explica. Além disso, a pesquisadora reforça que a tendência é o aumento da relutância vacinal aumentar justamente porque é um comportamento crescente.
Mesmo que a hesitação no Brasil seja pequena, o fato de ela estar impactando a cobertura vacinal é séria. Em agosto de 2022, a Fiocruz definiu as taxas vacinais como “índices alarmantes”, destacando o retorno de doenças antes totalmente controláveis pelos imunizantes, como a poliomielite e o sarampo.
Em 2016, o Brasil recebeu o certificado de eliminação do sarampo, que de 1990 a 2000 tinha registrado mais de 177 mil casos. Em 2019, o reconhecimento foi perdido após a falha em controlar um surto que começou no Norte e se espalhou nacionalmente.
Já a febre amarela, prevenível desde o final da década de 1930, acumulou 670 óbitos de 2016 a 2018, com 2 mil notificações. Compare esses três anos com a série histórica de 55 anos (1960 a 2015), quando foram registrados 1.150 casos e 407 mortes.
Com o alívio das medidas de distanciamento social, a percepção pública é de que a pandemia acabou e as variantes da Covid-19 são menos infecciosas. E isso é um desafio para a introdução de formulações vacinais atualizadas e doses de reforço entre as comunidades.
Além disso, a “infodemia” de fake news sobre os imunizantes e a própria “fadiga pandêmica” têm recuado ainda mais as pessoas dos alertas de instituições de saúde.
“Intencional ou não, a má representação ou a desinformação podem descarrilhar o progresso na cobertura vacinal contra Covid-19, particularmente se as audiências não procuram informação em fontes oficiais. Essas fontes de alta credibilidade enfrentam desafios adicionais pela fadiga pandêmica e, entre algumas comunidades, a desconfiança em relação às instituições”, explica o estudo.
Na opinião de Alcides e Bianca, o governo brasileiro enfrentará grandes desafios para recuperar a cobertura vacinal de excelência. Além de boas campanhas, diz a epidemiologista, os líderes das três esferas deverão prestar atenção no quão acessíveis são os pontos de vacinação: eles têm um horário e local conveniente para a rotina da população?
“Eu acho que não pode ser só um cenário de voltar como era antes”, complementa o médico. “É preciso que haja inovações para lidar com o desserviço das fake news.” Para isso, os especialistas destacam que os fatos científicos são insuficientes para convencer os negacionistas da segurança das vacinas.
“Não é com fatos que eu consigo abrir caminho. Eu preciso criar uma narrativa envolvente”, diz Bianca. Na percepção de Alcides, isso implica envolver formadores de opinião como líderes religiosos e o trabalho dos agentes comunitários de saúde.
Como médico, ele aproveita para destacar o negacionismo do próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) durante a pandemia, que permitiu e estimulou o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina e a ivermectina. “A classe é mais de mercadores da doença do que promotores da saúde”, lamenta.
“Os profissionais de saúde têm a obrigação moral de estimular a vacinação”, reforça Bianca, defendendo a responsabilidade de os médicos sempre questionarem sobre o status vacinal dos pacientes e encorajar a atualização do esquema.
"Oie, aqui é a Catalina, repórter do OP+. Te convido a compartilhar o que achou desse conteúdo nos comentários abaixo! :)"
A reportagem utilizou os dados das pesquisas A survey of COVID-19 vaccine acceptance across 23 countries in 2022, publicada na revista científica Nature Medicine; e da pesquisa Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia, conduzida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia (INCT-CPCT / COC/Fiocruz).
Também desenvolveu os gráficos a partir dos dados do Datasus, pelo Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI/CGPNI/DEIDT/SVS/MS), extraídos no dia 17 de janeiro de 2023, às 13h30min. A reportagem considerou a série histórica da cobertura vacinal de 2012 a 2022 — última década de imunização —, por região brasileira e por imunizante disponível na PNI.
Como forma de manter a transparência, a reprodutibilidade e a credibilidade, O POVO+ disponibiliza também a base de dados utilizada nesta reportagem.
Especial mostra os problemas da imunização no Brasil pós-governo Bolsonaro