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Não existe saúde mental em um mundo em colapso
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Repórter do O POVO+ especializada em ciência, meio ambiente e clima. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é premiada a nível regional e nacional com reportagens sobre ciência e meio ambiente. Também já foi finalista do Prêmio Einstein +Admirados da Imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar na região Nordeste

Catalina Leite ciência e saúde

Não existe saúde mental em um mundo em colapso

A terapia pode oferecer ferramentas para enfrentar as crises individuais do cotidiano, mas ela não resolve o desespero de ver o mundo que você conhece sendo destruído
Tipo Opinião
Moradores da comunidade Paraizinho carregam garrafões de água potável pelo leito do Rio Madeira em Humaitá, município do Amazonas. (Foto: MICHAEL DANTAS / AFP)
Foto: MICHAEL DANTAS / AFP Moradores da comunidade Paraizinho carregam garrafões de água potável pelo leito do Rio Madeira em Humaitá, município do Amazonas.

O amarelo setembrino já está desbotando. Entra ano, sai ano e continuamos falando de saúde mental como um fenômeno individualizado, com alguns comentários aqui e ali sobre o peso do sistema econômico e produtivo na experiência mental humana. O que sempre deixamos de refletir é que não existe saúde mental em um mundo em colapso. Quem está bem ou não percebeu o nível da crise, ou é responsável direto por provocá-la.

Não sei se é possível falar em saúde para os milhares de nortistas que estão há anos enfrentando queimadas incessantemente. Além da inalação de fumaça tóxica, das doenças respiratórias e dos olhos ressecados, as sensações de medo, raiva e abandono enfrentados por eles não se resolvem com terapia. O universo deles está sendo incendiado criminosamente sem punição, e os nortistas ficam ao relento sem a comoção do resto do País.

O Setembro Amarelo é uma importante campanha de conscientização sobre o suicídio e de luta por mais atenção à saúde mental, mas precisamos deixar de lado as falas prontas e a individualização do problema. Precisamos procurar ajuda quando nos sentimos desesperados? Claro! Mas o que fazer quando meu desespero é consequência da injustiça ambiental? Para quem eu ligo para chorar os incêndios provocados pelo agronegócio, os assassinatos de indígenas por garimpeiros e grileiros? As espécies em extinção por causa do tráfico de animais e da caça?

Eu tenho apenas 25 anos e o mundo de hoje não é o mesmo dos meus 15 anos. Quando eu era adolescente, morando em Manaus (AM), vivi algumas vezes a cidade coberta de fumaça. Ela tocava o chão como névoa, mal dava para ver os carros na nossa frente. Na escola, gente asmática faltava aula e eu ouvia pela primeira vez orientação de usar máscara. Foi um dos momentos mais esquisitos da minha vida escolar. Hoje, é “só” mais um dia para os alunos nortistas.

O efeito dos crimes ambientais e da crise climática na saúde mental já tem nome: ecoansiedade (e suas variantes). É essa agonia medonha pelo presente e pelo futuro definidos por agentes econômicos e quase sempre criminosos que provocam as mudanças climáticas. É aquela sensação de peito apertado e falta de ar, de desesperança, uma vontade esquisita de chorar e a percepção de que o mundo da minha infância é milhões de vezes diferente da minha vida adulta, que, por sua vez, será bilhões de vezes diferente da minha senioridade.

Assim como o mercado de trabalho e a lógica neoliberalista têm reduzido o cérebro dos jovens trabalhadores a pó, a emergência climática faz o mesmo, com o agravante de ser mais ignorada pelas frases de efeito das propagandas — na verdade, eu deveria dizer que a crise é estimulada por elas.

Uma das maneiras de enfrentar essa ansiedade é lutando. Participando de coletivos ambientalistas, apresentando soluções de adaptação e mitigação, levantando possibilidades de futuros sustentáveis e justos. Focar na ação, votar em gente que fale seriamente sobre o assunto. Fazendo algo, qualquer coisa, para fugir da sensação de impotência de ser apenas mais uma imersa na complexidade de interesses políticos e econômicos daqueles que acham o modelo atual perfeito.

Moradores da comunidade Paraizinho carregam garrafões de água potável pelo leito do Rio Madeira em Humaitá, município do Amazonas.(Foto: MICHAEL DANTAS / AFP)
Foto: MICHAEL DANTAS / AFP Moradores da comunidade Paraizinho carregam garrafões de água potável pelo leito do Rio Madeira em Humaitá, município do Amazonas.

Precisamos que o Setembro Amarelo comece a divulgar isso. A terapia pode até tratar nossos traumas de infância e nossas dificuldades de relação interpessoal, pode oferecer ferramentas para acalmar nossas crises; mas ela, sozinha, não resolve os recordes de calor, as áreas desmatadas, as chuvas torrenciais, as mortes por inundação e por seca, o sumiço dos bichos e os refugiados climáticos. E eu sei que não consigo dormir pensando nisso.

Eu não moro mais no Norte, mas a região onde nasci e me criei está sendo destruída na frente dos meus olhos, pela tela do meu celular. Quando eu visitar minha terra natal, talvez não encontre mais a paisagem verde, os rios cheios e vivos. Tenho certeza que você pode dizer o mesmo sobre o lugar onde você nasceu e cresceu.

Não tem terapia que resolva isso, não tem canal de ligação aberto, não tem abraço e nem palavras de conforto. Não se engane: não existe saúde mental plena quando o mundo está sendo aniquilado. 

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