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De fuscas, de bolas, de velocípede e bicicleta
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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira. É autor dos livros

De fuscas, de bolas, de velocípede e bicicleta

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Tipo Crônica

Acredito que quem tem alguém para se lembrar experiencia dias mais agudos pelo despertar da memória. Creio também que, nos dias de menor agudeza, as lembranças meio que dormem n’algum ponto do subconsciente e isso em nada configura esquecimento, abandono ao ente querido. A vivência de cada um é marcada por acontecimentos condicionantes dessa própria existência; em alguns instantes sofremos mais, em outros menos ou até mesmo nem padecemos. Lembrar não implica exatamente sofrer. Em nossa história também ocorrem episódios alegres e felizes.

No momento em que existo nesse hoje tenho me acompanhado da presença de meu irmão, partido a outra dimensão no maio da experiência mundial epidêmica. Como tantos outros apartados da vida terrena no período, meu mano seguiu para outra trajetória que não suspeito. Foi e para ele não pude ter meu olhar terminante, como aconteceu também com tantos outros em situação igual ou semelhante. Há uma falta, uma lacuna, uma chaga aberta após a ida dele. Sei que muitos, à minha semelhança, sentem uma ferida que dói, porque ardendo feito fogo sem fim.

Inquietas, recordações me põem a vê-lo novamente na infância. Ao meu lado, empurrava seu grande fusca vermelho (a cor preferida na criancice) com carenagem em plástico de lá para cá, de cá para lá vruuuuuummmm vruuuuuummmm bibi bibi...; eu o imitava, no comum do mais novo repetir o nascido antes vruuuuuummmm vruuuuuummmm bibi bibi... Meu fusca era verde – ou seria azul? Não importa – e fora comprado por meus pais na mesma noite, ao mesmo camelô, banca posta defronte o hospital de onde eu me retirava. Naquela situação envolvendo a saúde de um dos filhos, meus pais entenderam que dois brinquedos seriam melhor que apenas um elevado à máxima potência de divisão equânime de tempo de brincadeiras.

A casa em que crescemos ainda existe e nela há vidas que pulsam. Sobrevivem ali, quase intocados, dois espaços onde praticávamos nosso futebol pueril: uma comprida e descoberta área externa pela qual se adentra à casa; um corredor interno, portanto coberto, pelo qual se chega aos cômodos residenciais. Ambos apertados. Ambos impróprios para o gol a gol (não sei afirmar quantos objetos da apreciação de nossa mãe se desintegraram após graves beijos das esferas voantes) e, principalmente, para os traços, os dribles dos craques que naquele momento se planejavam, mas que nunca aconteceram – uma sorte aos amantes devotados ao esporte.

A prática esportiva futebolística, claro, não era permanente, sempre havendo intervalos, curtos ou longos, de descanso, de calmaria, momentos em que nossa mãe era muito sorrisos. Não demorados, claro. Afinal, “Criança faz cada uma!”, não é mesmo? Bolas guardadas (escondidas?), os atletas trocavam a correria nos “campos” pela aceleração nos “autódromos” caseiros. Então, eis que de um lado para o outro o velocípede, também vermelho, simulava automotor rasgando o tempo e os espaços em velocidade inquietante. Não me lembro se houve algum dia um vencedor das peripécias, pois havia o confisco daquele veículo antes de finalizadas as competições – a segurança de todos era o mais importante.

Em casa, o olhar materno e a observação paterna sempre estabeleciam mecanismos de controle dos excessos que pudéssemos cometer, Super Zé e eu. Não éramos verdadeiramente muito traquinas, mas fazíamos das nossas. Como quando trocamos as pistas caseiras pela mais longa e larga chamada rua. Não era mais o velocípede vermelho, mas a bicicleta verde Monareta a nos servir como meio de inventar estripulias e enfrentar maiores velocidades em competições não somente em duo, porém entre os amigos também metidos a velocistas.

Éramos unidos, meu irmão e eu. Não unha e carne, pois tínhamos nossas diferenças. Crescemos unidos e diferentes. E nas nossas diferenças, nos respeitávamos, sabedores de que cada um é cada um e que as diferenças, quaisquer que sejam, não devem ser entendidas como mecanismo impossibilitador da convivência pacífica entre irmãos. Casamos. Formamos nossas famílias. Deixamo-nos de nos ver cotidianamente, sempre sabendo estarmos à disposição um do outro a qualquer momento, em qualquer necessidade, em toda vontade. Amávamo-nos, seguramente, mesmo na distância ocasionada pelos desafios do dia a dia.

“Hoje à tarde foi um dia bom / Saí pra caminhar com meu pai”, disse Renato Russo, cantando a canção “Esperando por mim”, gravada pela Legião Urbana no álbum A Tempestade ou o Livro dos Dias. Parafraseando Renato, digo: Hoje à tarde está sendo um dia muito bom, por poder me lembrar de meu irmão. Principalmente por saber que as lembranças deixam claro termos vivido na perspectiva da amorosidade. A amorosidade caracteriza as pessoas garantidoras de amor e liberdade a si e aos outros, estejam próximos ou distantes, tornando as relações interpessoais mais agradáveis, mais leves, porque confessadas no princípio do amor.

Amar é algo a exigir das pessoas abertura para a compreensão das circunstâncias do outro. Contextos de vida podem ser semelhantes, embora desiguais, conforme as situações existentes. Compreensão é fundamental para que os abraços aconteçam e envolvam as pessoas fraternamente. Vivemos as nossas conjunturas, meu irmão e eu e hoje ele faz falta e desperta as memórias. E estamos em paz.

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