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Recordações
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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira

Recordações

Tipo Crônica

Há dias em que acordamos já saudosos, como se a noite de sono e sonhos nos preparasse para as recordações no novo dia.

Na verdade, faz dias que me preparo para esse dia. Faz dias que o vejo novamente chegando em casa, no final da tarde, com o balançado do corpo cansado transportando a ideia de dever cumprido. Em algum bolso da calça, iguarias doces, na mão direita os pães ainda quentinhos.

O beijo respeitoso na mão de minha mãe era infalível. O sorriso também era cansado, mas verdadeiro, pela alegria de estar em casa novamente. Mesmo cansado, tinha ânimo para brincar com os filhos antes do banho. Depois dele, era comum deixar a filharada “pentear” seus cabelos que sempre precisavam de seu ajuste após nossos penteados em sua cabeleira.

Me lembro de meu pai sentado em uma poltrona após o jantar assistindo a telejornal, silente, meditando. Nada dizia a respeito de seus temores daquele período nefasto de ditadura; sabíamos de suas preocupações em frases ditas à esposa, em tom baixo, senho fechado. Não entendíamos seus tormentos, suas aflições. Penso que não queria assustar os filhos com suas preocupações. A proteção da família era sim fator admirável na sua existência.

Em algumas manhãs domingueiras, um passeio na Praia do Náutico já festivo desde o anúncio da ideia de sairmos de casa para irmos até o mar. O Circular 1 nos levava na ida e o 2 nos trazia na volta. Não fazíamos castelos de areia com ele, somente com as tias, suas irmãs, quando vinham do Rio de Janeiro e se punham a atravessar o Rio Ceará com os sobrinhos e as sobrinhas. Com ele éramos “enterrados”, só a cabeça restando fora, até ele estimular nossa saída daquele brinquedo que adorávamos. Ríamos muito daquele breve desespero de retirar a areia de cima de nós.

Dois outros momentos ali foram também especiais. Um foi aprender com ele como descer com as ondas em “carretilhas” – era o máximo: “Essa não presta, está muito baixa.” “Aquela ali vem muito alta, é perigosa, é forte.” “Vamos nessa!” E lá íamos nós, um de cada vez, com ele, como que surfando no mar até o raso. Era comum, após esses movimentos, o calção de banho se encher de areia. Mas cada descida era um delicioso desafio, uma alegre aventura, enquanto, em terra firme, mamãe espreitava tudo com o coração na mão – me revelou isso já na casa dos quase 96 anos.

Outra alegria eram os instantes dos picolés. Depois das brincadeiras com a areia, depois das carretilhas, chegava o momento daqueles doces gelados, um para cada um, somente o que cabia no bolso. Acho que ele se furtava àquele prazer de refrescar o corpo, abrindo mão do próprio deleite, contanto que não faltasse aos filhos e à esposa. Ao fim do passeio, o Circular 2 nos transportando de volta para o sossego de casa, para o aconchego daquele lar.

Papai também gostava de futebol. Torcia pelo Ferroviário Atlético Clube, onde foi goleiro antes de se matrimoniar, também pelo Santos de Pelé e, principalmente, pelo Ceará Sporting Clube. Ele, eu e meu irmão fomos algumas vezes ao Presidente Vargas e outras ao Castelão vermos nosso time do coração jogar. Os estádios foram os únicos lugares onde o vi dizer palavrões. Penso que lhe era catártico xingar juízes e jogadores. Ali, penso, deixava todos os dissabores guardados nos seus silêncios.

Tantas lembranças emergem da memória em dias como o de hoje. E agora, somente a memória fala, perfeita ou imperfeita. No mais, tudo é silêncio...

Foto do Chico Araujo

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