
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira
- Mãe? Mãe?
- Humm... Mas olha, é o Francisco Sergim.
- Benção, Mãe.
- Deus abençoe. Como estão todos?
- Todos bem.
- Graças a Deus.
Depois da primeira medicação, um novo sono até sete e meia. Depois da segunda, um novo sono até às oito horas. Aí era um despertar lento até o café da manhã. Na sequência, a preparação para a missa das 9h de Aparecida. Entre cochilos. Depois da missa, se não pedia para voltar para cama, punha o crochê na agilidade dos dedos. Uma ou outra fala sobre alguma coisa que lhe chamasse a atenção, sob provocação nossa ou desejo pessoal. Ficava, entretanto, a maior parte do tempo em silêncio meditativo. Uma realidade só dela?
Ao meio-dia, o terço com o Padre Juarez. Depois do almoço, via um pouco do Jornal Hoje, quando comentava um ou outro fato que chamava sua atenção. "Mas não tem uma notícia que preste? É tudo só desgraça no mundo" – comentava. Ia à sesta.
Às 15h era acordada para assistir a adoração ao Santíssimo. Logo após a adoração, o sorriso dela perguntando "Já tem café"?
O café da tarde era sagrado para ela, lembro disso desde que éramos crianças, quando também o bebíamos atolando o pão com manteiga dentro dele. Mamãe já não gostava de consumir manteiga, mas adorava saborear um "pãozinho-de-leite". Quando lhe mostrava o potinho de canjica, com sorriso dizia "Oba, vou jantar canjiquinha hoje". Aquele era o momento em que mais falávamos, porque era o momento em que estava mais desperta. Os remédios que ajudam também atrapalham.
Entre três e vinte e quatro horas da tarde acendeu muito a memória de seu Quixadá querido, ao qual tentou voltar algumas vezes, sem conseguir. Muitas vezes ficava só no desejo, não queria pôr a vontade em prática. Rememorou várias vezes que meu vovô, seu pai, não queria se aposentar, que houve interferência até do prefeito amigo da família, mas em vão. Vovô trabalhou até seus últimos dias. Também se lembrava muito do tempo de estudante e dos primeiros passos como professora no Sagrado Coração de Jesus. Quixadá era o lugar preferido de suas memórias, quando queria falar de seu passado.
Depois do café, já não queria mais falar muito, uma coisa ou outra dizia, espaçadas, um comentário ou outro, vendo Otávio Guedes e Julia Duallibi na Globo News. Gostava de como os dois se davam bem no noticioso. Mas as notícias... "Não tem nada que preste, é só coisa ruim". Muitas vezes ouvia-os enquanto “crochezava” um bico em pano de prato – já não ousava grandes aventuras naquele seu robe. De vez em quando parava o manuseio do crochê e olhava o ponto à sua frente – um ponto que eu não via, que não estava acessível à minha percepção.
- O que foi, mãe?
- Nada. Só pensando... Lembrando... Às vezes lembrar não é muito bom...
Pelas cinco da tarde começava a alertar para a hora de seu banho, porque às seis teria o terço do Padre Lúcio Cesquim. “Um padre sorridente”. Depois do banho, a aguinha de coco geladinha. E então Lúcio Cesquim na tela e em nossas mãos nossos terços. O momento seguinte era dividido entre o finalzinho da missa da Rede Vida e a canjiquinha, falando, novamente, mas só um pouquinho, "Não tenho muito o que falar", dizia, às vezes sorrindo.
Me acostumei a me despedir dela após o terço com o padre Antônio Maria, quando, após me abençoar, dizia "Obrigada pelo dia de hoje". "Diga a Sulling que não fique com raiva por você vir ficar comigo". E Sulling chateada por não poder ficar mais tempo com ela.
Não sei precisar o tempo exato em que saía cedo de casa para chegar cedo em casa de mamãe, até para lhe dar as primeiras medicações e tomar o café matinal com ela. O que sei é que na manhã em que ela deixou seu corpo aqui na Terra para se dimensionar pelo universo de nosso Deus – casa de muitas moradas – e reencontrar seu marido e seu filho também já encantado eu cheguei mais tarde.
No tempo da minha tardança, ela partiu. Sem aperreios, mas sentindo seu enfraquecimento sem dores – Ana Maria me disse, porque coube a ela assisti-la, como fez com nosso pai. Entrando na casa onde nasci, após ver o olhar choroso e aflito de Luiza próxima à ambulância em frente à casa e ouvi-la dizer "Vá ver mamãe", do corredor vi Ana Maria balançando a cabeça em sinal negativo. No abraço entre lágrimas, na frase "mamãe partiu" e no paramédico afirmando não haver mais nada a ser feito, deu-se o momento em que iniciamos esse nosso luto. Um luto que nos acompanha dia a dia, nos ensinando o quanto precisamos aprender a existir com a dor da perda. Uma dor que sei não cessar nunca, pois também sei que não cessou pelo meu pai nem pelo meu irmão, mas que nos vai ajudando a ter uma compreensão melhor, talvez, de nossa própria existência.
O mais que digo é que sei e sinto que as pessoas só morrem de fato quando são esquecidas. O corpo, a matéria que as compõe, sabemos todos, não podem mais ficar ao alcance de nossos olhos. É assim e sempre será. Mas elas mesmas só morrem pelo esquecimento. Eu não esqueço. Sempre estou pleno de boas lembranças e saudade. E pedindo bênçãos.
A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.