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Dores que subvertem um eu
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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira

Dores que subvertem um eu

Tipo Crônica
Capa do livro 'Dores Subversivas', de Alana Alencar (Foto: Chico Araujo)
Foto: Chico Araujo Capa do livro 'Dores Subversivas', de Alana Alencar

O termo “subversão” é costumeiramente associado a movimentações na sociedade voltadas à modificação de uma realidade político-social. No entanto, é legitimamente possível pensar e admitir sentimentos e atos subversivos em um plano subjetivo, no espaço e no ambiente interno de um “eu” que se revolta e intenta destruir, aniquilar o que lhe desassossega intimamente, na busca maior de renovar-se, refazer-se, reconstruir-se.

Os estudos acadêmico-teóricos sobre o “período romântico” existido no século XVIII informam terem vivido muitos de seus artistas – poetas, músicos, pintores – “à beira de precipícios”, por darem exponencial vazão à expressão de seus universos interiores marcados por intenso sentir de emoções profundamente avassaladoras para seus espíritos, o que lhes deixava suscetíveis a fragilidades humanas. As artes que desenvolviam serviam como que para depuração dos males sofridos.

Reflito eu que, em concomitância, contudo sob outras inspirações, o denominado “período realista” (reconhecido didaticamente nas escolas como nascido no século XIX) se organizou de maneira a estabelecer contrapontos “aos excessos românticos” de artistas afundados em sentimentos de tristeza, angústia, solidão e, nesse outro ímpeto, outros artistas – em alguns casos, os mesmos, assumindo nova visão – ostentarem a voluntariedade de revelar ao mundo “a vida como ela é”, sem excessos de sentimentos, mas com a verve de ser profundamente real, mostrando a existência humana como vida vivida de maneira objetiva, crua, sem subjetividades, apenas dando destaque ao que nela acontecia verdadeiramente, realmente.

Há muito tempo tenho para mim que romantismo e realismo são acontecimentos de existência na vida humana, de maneira dualista, em algumas pessoas mais em outras menos, em algumas sociedades mais em outras menos, em alguns momentos históricos mais em outros menos, porém sempre coexistindo, às vezes até se acomodando sem a necessidade de brigas por espaço, sem competições cansativas e desnecessárias, apenas convivendo, em múltiplos instantes, de maneira “pacífica”, tatuando nos viventes suas forças, demarcando suas presenças. Assim pensando, é-me fácil acolher a ideia de que desde a Grécia antiga essa dualidade já tinha assento na sociedade, sem o reconhecimento nominal naquele momento.

Para mim, então, é igualmente fácil perceber nesse primeiro quarto do século XXI a permanência do coexistir no ser humano das duas características, havendo, sim, significativamente em muitas pessoas a excitação do estado romântico, em outras tantas a exacerbação do estado realista, em outras mais uma espécie de efervescência dos dois estados “em chamas em meio termo”, como uma fervura “em fogo brando”. E os artistas, a meu modo de ver, são os seres sociais que melhor expressam essa ebulição das realidades e das subjetividades existentes no ser humano.

Ora, eis que vejo, nesse século de agora, um livro de poemas com o título “Dores Subversivas”, expressão que, para mim, tem pleno sentido em verso de poeta. Nesse caso específico, não é um verso exatamente, mas se promove como um título. Lindo título, que, minimalista, em duas palavras grita já mensagem poderosa da poeta cearense Alana Alencar, reverberando para o mundo social real vicissitudes de sua subjetividade existencial. E com que elegância o faz, sendo extremamente meticulosa na seleção vocabular usada para pôr os versos na expressão de um eu lírico confessional, intenso nos sentimentos, emoções, vivências expostas em poemas muitas vezes sucintos e, digamos, romanticamente “apaixonados” como

XXI
Quanto de poesia de teus lábios inspira
O livro ainda em branco dos meus versos

sucintos e eróticos como

XXIV
Ipês amarelos...
e você por dentro.

Alana Alencar é poeta de já cinco livros publicados e, em “Dores Subversivas”, expõe para a humanidade o latejar, em seu espírito, de um eu lírico com características românticas, declinando de sua existência aflições, agonias, ansiedades para as quais deseja a superação, ou, paradoxalmente, incensa a fogueira da lembrança para lançar-se no perigo da memória:

XL
Penhasco.
Inclino-me à lembrança dos teus olhos.

Não é raro amantes declararem ter o sentimento da insegurança na vivência de uma paixão ou de um amor que significa “tudo”. A insegurança em vivências assim enseja o distanciamento de qualquer equilíbrio, uma vez que nada é certo, nada é concreto o suficiente para se ter uma relação real perfeita e sem perigo de desfazer-se feito névoa, de quebrar-se feito cristal. No entanto, a chama arde, e faz vibrar o risco “do que é” “não mais vir mais a ser”, ficando todo o vivido apenas no plano da memória, da saudade. Há saudade que machuca. Há lembrança que é abismo. Há palavras que desenham o suplício de angústias. Alana se apropria bem delas.

Na poética de Alana Alencar em seu “Dores Subversivas”, o eu lírico parece não conseguir alcançar a pulsão necessária para exorcizar as aflições incontidas. Mas... será mesmo que deseja dar um fim ao que sente, descarregar totalmente o sentimento que dilacera? O que pensar do que diz o eu lírico em

LXIV
Transito entre mundo e aquarelas
Desenhando teu rosto na memória.
Fecho os olhos e tua imagem vem...
És tão bonito.
Afogo-me entre as saudades
E o que tinha a dizer, apenas suspiro.
Respiro teu cheiro como se a lembrança tivesse
Força de matéria...
E posso tocar teu corpo com a mesma força de
Sentir-me em paz na tua ausência.

O universo poético de um poeta sempre é algo grandioso e quase nunca plenamente alcançável. Entendo ser possível ao leitor, em sua interação com poemas lidos, alcançar aspectos de subjetividades muitas vezes reverberantes em seu próprio estado de subjetividade, suas idiossincrasias talvez em concordância com as do poeta lido. Não afirmo isso com base nessa leitura agora feita. Afirmo, contudo, a contundência de extrema beleza da poética de Alana Alencar, subversiva, explorando dores e medos – a obscuridade de universo calado, guardado, escondido, camuflado de “não sei o que” no cotidiano vivido. Talvez haja um grito em

LXXXV
Medos subterrâneos... dores subcutâneas.
Versos subversivos

Foto do Chico Araujo

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