
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira
Em algum momento a urbe dorme? Mesmo em suposta sonolência, ela parece não fechar os olhos – cão brabo à espreita de ver o que os cães veem.
Quando a cidade de Fortaleza não era tão grande quanto é hoje e eu ainda contava anos pela adolescência e juventude, eu transitava por ela até com desenvoltura, ia conhecendo suas entranhas que não me causavam estranhezas nem preocupações.
Deixo claro: não trato disso por saudosismo simplório estimulado pela enganadora propaganda circulante de que, sob a ditadura militar, “a vida era melhor”; não era (além de violências praticadas, informações de interesse da sociedade eram sonegadas, porque postas sob censura pelos militares). Essa minha fala é, nesse início de texto, apenas uma lembrança dos meus passos na minha história.
Naquela época, as calçadas das ruas serviam a mim para os caminhares de ida à escola, depois à universidade e ao trabalho. Para as pessoas em geral, serviam também para o caminhar tranquilo de ida a múltiplos lugares e de volta a casas com “gentes” sentadas nas calçadas, papeando, boquinha da noite e noite adentro.
A vizinhança não era silente nem afastada como a que existe hoje em condomínios fechados – a busca (ilusória?) de morada segura –, pouco interativa e se considerando protegida das inspirações audaciosas de criminosos e, ainda, pulsando em esperança padecida de se viver em um tempo e lugar sem medo.
Naquela fase da minha existência, parecia que a vida não tinha pressa. Não, não era “um mundo besta”, mesmo que pessoas e bichos passassem devagar. Havia "boas noites" festivos e amistosos até entre desconhecidos que podiam, a partir de então, chegar a confraternizações. Apertos de mão valiam para o fechamento de acordos pacíficos, que nem palavra empenhada e dispensadora de assinaturas em papel e reconhecimentos em cartórios.
Na superfície, muitas vezes, tudo parece funcionar bem. Naquele período, eu não tinha a visão de mundo que creio ter agora, pois estava dentro do meu trânsito social distante da percepção política e entre tantos seres que, assim como eu, não tinham olhar destravado para as realidades explícitas e implícitas.
Éramos, muitos, peças, apenas, de uma engenhoca determinativa da falsa boa vida de cada um. E, mesmo sendo parte contributiva do “azeitamento da máquina política” que é a sociedade, quase nunca sabíamos de seu real funcionamento nem sequer tínhamos percepção de como estávamos servindo à engrenagem.
Na superfície, contudo, de soslaio, os já sagazes, espreitavam os olhares subsumidos na escuridão sob uniformes em espreita. Havia baionetas na ponta dos olhares duros e vazios de jovens recrutas insapientes. Todos nós restantes estávamos por ali, subjugados sem percepção das botas opressoras.
Éramos muitos desempenhando o mesmo papel de cegueira sem ensaio. Muitos não possuíamos onisciência naquele tempo – a caverna platônica, talvez, nos envolvendo. Eu não estava fora, olhando de cima, dos lados, antevendo os próximos passos; apenas os cumpria em silêncio que era mesmo inocente.
Não saber era imperativo. O saber implica sempre navegar em ondas de revolução; saber impulsiona o romper dos cordõezinhos de marionetes nos movendo; saber acende chama que arde e se reveste de luz iluminadora incitando novo olhar, novo saber, novas ações.
Naquela minha linda juventude, desenvolvi o hábito de me informar, de querer saber das coisas a partir de leituras em livros, jornais, revistas – e ainda o mantenho. A televisão e o rádio também eram fontes, mas estava mais ligado ao segundo que à primeira. Nem de longe havia tantos meios “comunicativos” como existem hoje.
Curiosamente, hoje, as muitas mídias existentes convidam, muitas vezes, ao consumo rápido e superficial de informações, recebendo acessos, principalmente, de jovens que, sem estarem em ditadura e não conviverem com censura imposta, consomem informações ilusórias, desta vez em subjugação a mentiras propositalmente disseminadas em abundância por civis agindo à semelhança dos militares entre 1964 e 1985.
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