Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira
Sempre me encanto com o que as artes podem nos despertar em suas minúcias. O que vejo nelas? Produções criativas e reveladoras de muitas subjetividades, o artista doando interpretações sobre o mundo, firmação de posicionamento crítico, sensibilidades plurais.
Vou com Lacan na compreensão de que a arte literária seja mecanismo simbólico com o poder de expressar o mundo interior dos escritores. Em breves versos de Alana Alencar, anoto esse exemplo de expressão do mundo: “Medos subterrâneos... dores subcutâneas. Versos subversivos”. (Dores subversivas); de Regine Limaverde: “Tentei o doce dos teus lábios/ mas provei o salgado dos meus olhos” (Poesia em Cartaz); de Nádia Camurça: “precisaria que tocasse música/ vinte e quatro horas por dia/ para não ouvir o silêncio/ em que meus fantasmas dançam” (Poesia em Cartaz). Grandezas poéticas!
Amplio a ideia de Lacan. Para mim, todas as artes revelam um “estado” profundo de inquietação de seus criadores. Na pintura, por exemplo, Edmar Gonçalves tem série de telas pintadas no projeto Aquavelas – “Rimas de ventos e velas” é sua pintura do ano de 2024 (em diálogo com a canção “Porto solidão”, de Gincko e Zeca Bahia, imortalizada na voz do intérprete Jessé), feita para a quinta edição do projeto que envolve diversos artistas plásticos cearenses dando brilho, anualmente, à “arte de navegar” em parceria com a arte de pintar. Em 2025, sua pintura na vela de uma jangada foi em homenagem a Iemanjá – ambas pinturas podem ser apreciadas no perfil do artista.
A música, outra grande paixão instrumental ou letrada, é algo magnífico de tão enternecedor. Em forma de canção, pode acordar sensações múltiplas no público ouvinte (pela melodia em toda sua beleza sonora, considerando os sons dos instrumentos tocados de maneira harmônica em associação aos arranjos unificadores de todas as nuances existentes), podendo também “chacoalhar” o espírito de quem a ouve acrescida da letra (sua parceira composicional), provocando alegrias, tristezas, reflexões... acordando sorrisos... emergindo lágrimas...
Gosto, sim, e escuto muito atento a música instrumental, porém me adocica a alma a canção, pois dela tento sentir e compreender as percepções, motivações, sensações e mensagens pretendidas pelo letrista. Os músicos me tocam pelas melodias, pelas harmonias, pelos arranjos; os letristas pelas palavras, pelos versos desenvolvidos, pelos encaixes semânticos que providenciam, pelas figuras de linguagem trabalhadas.
Cantam Edinho Vilas Boas e Yayá Vilas Boas nos versos iniciais da canção “O que cabe no meu coração”, parceria de Edinho com o mineiro Raul Maxxuel: “O que cabe no meu coração/ Não é brincadeira/ Cabe toda dor do mundo/ Que não é pequena...”. A metáfora inicial é bem sugestiva na associação vinda em sequência, afirmando a seriedade e verdade do que é dito, ampliando delicadamente a ideia de que no coração cabe até todo o sofrimento do mundo. Um coração pacífico, humano e acolhedor em sua humanidade.
Escuto e escuto e escuto e vejo e vejo e vejo essa canção tantas vezes que nem sei dizer em quantos momento já me arrebatei com ela. De melodia sedutora, com arranjos extraordinariamente sensibilizantes feitos por Thiago Almeida e letra surpreendente, sempre vou sendo conduzido pelas vozes de pai e filha em uma viagem que me leva, de seus cantos, ao meu coração, acolhido por eles que certamente estou, com minhas virtudes e meus defeitos, pelo cantado por suas vozes.
Em comunhão com a amplitude do coração expresso nos primeiros versos, a letra apresenta temas transitando entre pontos de vista romântico e questões pontualmente críticas sobre a existência humana em sociedade. Há, nela, sentimento amoroso, denotando acolhimento: “A magia e a diversão/ Os amigos do parque”; há também a lembrança de coisas lógicas seguida da admirável relação entre eventos distintos: “Cabe sangue e o songbook do Buarque/ Cabe a noite e o dia/ Embolia e desfibrilação”.
Também tem humor e sutis ironias – “Cabe até aquela ponte/ De safena” – como se alertasse o ouvinte para o inusitado na vida humana; também temas religiosos, tocados pela fé – “Cabe a fé/ Em parábola/ Cabe axé/ cabe Fátima/ Cada versículo/ Num cantinho/ De um ventrículo”. Um coração tocado pela fé, guardando em cada ventrículo as mensagens dos versículos que impulsionam e permitem bombar a força para a vida em tranquilidade, em paz. Me pergunto: Onde me ponho, onde estou no meio de tudo isso?
Nos dias atuais, incrivelmente marcados por discursos de ódio, promoções de violência, incentivos a conflitos, viabilizações de guerras, ensejos a preconceitos, intolerâncias, perseguições religiosas, quando a humanidade deveria contemplar a semeadura da paz e da existência em comodidades, artes podem despertar no ser humano sentimentos bons, de calma espiritual e aceitação do outro em suas diferenças. “Um canteiro na aorta/ A porta da esperança/ Cabem tantas lembranças/ Santa Maria e Fortaleza/ Alegrias tristezas/ Fadas, musas, princesas/ Graça e coisa séria” são versos da canção dizendo a nós, ouvintes, a beleza que é cultivar no coração sentimentos bons, determinados pela simplicidade de como podemos perceber e realizar nossa existência – “Até a arte ri/ Bombando nas artérias”.
Sim, gostaria que fosse assim, que fosse tudo envolto em candidez, em respeito, em tolerância, em empatia, em acolhimento. Talvez pudéssemos sorrir mais, até rir mais até de nós mesmos, sabendo e sentindo correr em nosso organismo um sangue mais puro, mais limpo, nós... seres menos doentes.
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