Tiradentes: filme "Açucena" promove acesso fragmentado e distanciado à protagonista-título
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Tiradentes: filme "Açucena" promove acesso fragmentado e distanciado à protagonista-título
Documentário baiano "Açucena", dirigido por Isaac Donato, é o primeiro longa da competição principal da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que segue até 30 de janeiro
"Açucena" é um documentário centrado na personagem-título, uma senhora de 67 anos que há décadas comemora repetidamente o aniversário de 7 anos. A obra baiana dirigida por Isaac Donato desponta como uma desafiadora experiência espectadora, marcada por abordagem distanciada e fragmentada. O longa foi o primeiro da Mostra Aurora, a principal competitiva da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a ser disponibilizado no site do evento, que neste ano é totalmente online.
A sinopse é curta e direta ao apresentar a história na qual se debruça a obra, mas não se aprofunda em expor maiores contextualizações daquele fato. É como o próprio filme faz, evitando didatismos e abordando tal evento não pela centralidade, mas pelas beiradas: o que acompanhamos são os preparativos que orbitam a ocasião, que aparenta ser central e tradicional para a comunidade ao redor.
Uns ajudam na decoração, outros na organização da casa de Açucena, há quem atue nos comes e bebes, quem traga presentes e, ainda, quem se some apenas na realização em si do festejo. É evidente, de toda forma, o poder do fato social estabelecido ali e é pela movimentação que o eterno aniversário implica naquele contexto que ele é minimamente acessado.
Ao optar pela fragmentação - tanto contextual quanto imagética, com a câmera quase sempre registrando detalhes e pedaços do lugar e das pessoas à média distância -, o filme estabelece uma forma específica de retrato, que sobrepõe o desvendar e o esconder. Ao longo dos 70 minutos de sessão, confesso: não sei se vi Açucena no filme.
Observando a repercussão da obra em textos críticos, comentários nas redes sociais e no próprio momento do debate, é curioso notar como algumas certezas conflitantes se instauram em relação ao longa. Há quem reconheça a protagonista numa das mulheres que aparece na obra, quem assuma que Açucena não está presentificada ali e outros, ainda, que entendem a presença da personagem a partir de uma sobreposição entre elas.
A tal "presença não-presente" - ou quiçá "não-presença presente" - da protagonista no filme causa incômodo, mas é essa ausência de certezas definidas que parece ser a base principal na qual a obra se ergue. O próprio distanciamento calculado entre a câmera e os cenários e personagens se baseia em uma ideia de "entre".
A partir dessa história central que pode soar tanto preocupante quanto lúdica - além de Açucena repetir o aniversário infantil todo ano, há uma predileção da personagem por bonecas de brinquedo, daquelas mais comerciais, que se avolumam no espaço de uma casa toda em tons de rosa -, a distância estabelecida em relação aos objetos e sujeitos no documentário parece funcionar tanto como um indicativo de respeito quanto como uma opção pela apartação daquele contexto.
Sem fornecer repertório fechado e explícito para lidar consigo, o filme se desenvolve pela ausência, escolhendo suprimir certos aspectos e destacar fragmentos, exercendo um constante e desafiador gesto de identificação-desidentificação. "Açucena" se dá, de forma consciente, pela incompletude, convidando o espectador a acessar, mas não desvendar.
Confira debate sobre a obra:
24ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Quando: até 30 de janeiro Onde: www.mostratiradentes.com.br Mais informações:@universoproducao
Programação
Mostra Foco Série 1 Os quatro primeiros curtas que compõem a Mostra Foco, competitiva do formato na Mostra de Tiradentes, foram disponibilizados na noite de ontem, 25, no site do evento. Eles ficam disponíveis até as 22 horas da quarta 27. Hoje, às 13 horas, ocorre o primeiro "Encontro com os filmes" da seção. Serão debatidos "Drama Queen", "A Destribuição do Planeta Live", "Céu de Agosto" e "Lambada Estranha". Quando: debate hoje, 26, a partir de 13 horas; filmes acessíveis até amanhã, 27, às 22 horas Onde:www.mostratiradentes.com.br/mostra-foco
O que é uma personagem? Um dos debates relacionados à temática da edição ocorre hoje, 26, às 16 horas. O tema que norteia Tiradentes neste ano é "Vertentes da criação" e, a partir disso, os cineastas Carol Rodrigues, Gabriel Martins e Lincoln Péricles discutirão a criação de personagens para cinema, pensando elementos deste processo e os níveis de cocriação com intérpretes. Quando: hoje, às 16 horas Onde:www.mostratiradentes.com.br/debate/o-que-e-uma-personagem/
Kevin, de Joana Oliveira Quarto longa que compõe a Mostra Aurora disponibilizado no site do evento, "Kevin" é um documentário mineiro dirigido pela cineasta Joana Oliveira. O filme acompanha a visita que a diretora faz à amiga Kevin em Uganda, seu país natal. Há 20 anos, as duas se conheceram na Alemanha, mas se afastaram. O reencontro surge em outro momento da vida delas, no qual estão prestes a chegar aos quarenta. A obra fica disponível a partir das 20 horas de hoje, 26,por 48 horas.
Proposta e universo singulares
A dupla de cineastas Melissa Dullius e Gustavo Jahn aporta na 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes com duas obras: o curta “Levantando do Chão” está na Mostra Panorama, não-competitiva, enquanto o longa experimental “Oráculo” compõe a Mostra Aurora, a principal do evento. No modelo on-line no qual o evento se desenrola, a ordemdosfilmes é menos uma decisão curatorial e mais um gesto do espectador, que pode ou não seguir as sugestões mais ou menos explícitas de caminhos deixadas pelas curadoras. No caso dos filmes da dupla, acessei ambos na ordem descrita, o que ajuda as duas obras a fazerem mais sentido enquanto proposta e universo. Se o curta de Melissa e Gustavo traz uma forma e uma estética bastante específicas e se baseia numa mesma açãorepetida em contextos diferentes, o longa avança nas escolhas formais e opera a repetição de outra forma.
“Oráculo”, em uma hora, apresenta cenas extensas que não aparentam ter ligação entre elas. As distensões de tempo e espaço propostas procuram operar num nível de contemplação e sentimento, mas a concatenação entre os segmentos e a própria lógica interna de alguns deles não me dizem muita coisa. Como organismos fechados, alguns trechos têm melhor resultado do que outros, mas a sensação geral é que falta substância.
Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.