"Não Olhe Para Cima" faz caricatura caótica e melancólica da atualidade
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
"Não Olhe Para Cima" faz caricatura caótica e melancólica da atualidade
Comédia apocalíptica "Não Olhe Para Cima" usa a descoberta de um asteroide que destruirá a Terra como mote de um olhar anárquico para aspectos da contemporaneidade
Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) são, respectivamente, uma candidata a uma bolsa de pós-graduação e um pesquisador e professor da Universidade de Michigan. Em uma atividade cotidiana da pesquisa, ela descobre um cometa até então desconhecido. O excitante fato logo se revela um grande problema, daqueles com aproximadamente 5 a 10 quilômetros de diâmetro. Após calcular a trajetória do corpo celeste, o professor descobre que ele irá cair na Terra em seis meses, causando um impacto que extinguirá toda a vida no planeta. A dupla, então, precisa definir como alertar a humanidade sobre o iminente fim. Farsesco e irônico, "Não Olhe Para Cima" traça caricaturas nada sutis de temas relacionáveis a contextos contemporâneos, da pandemia à superestimulação midiática, passando pelo negacionismo. Não por acaso, o filme vem ressoando de maneira intensa junto ao público.
O longa da Netflix tem direção e roteiro de Adam McKay, nome reconhecido da comédia em Hollywood que começou comandando produções comerciais e reconfigurou a trajetória ao começar a tratar de "temas sérios" sob o mesmo viés escrachado. Com "A Grande Aposta" (2015) e "Vice" (2018), o diretor ganhou reconhecimento dos pares e um Oscar de Melhor Roteiro.
"Não Olhe Para Cima", apesar dos paralelos evidentes com o período da pandemia, foi anunciado inicialmente em novembro de 2019. Naturalmente, o contexto global teve impactos práticos e simbólicos na obra, mas este fato em si já demonstra que o alvo — ou os alvos, melhor dizendo — de McKay é (são) mais amplo(s) do que a experiência da covid-19 no mundo.
A partir da descoberta, Kate e Randall precisam passar por diversas instâncias de poder para tentar alertar a população mundial sobre o cometa e, então, buscar formas de tentar desviá-lo. Alertando a NASA sobre o fato, a dupla recebe apoio do cientista Teddy Oglethorpe, mas, quando chegam à presidência dos Estados Unidos, encontram apatia, desconsideração e até manipulação de informações.
Quando Randall informa que as chances calculadas da extinção acontecer são de 99,78%, a presidente Orlean (Meryl Streep) "arredonda" o valor para 70%, já que as eleições estão próximas e a mandatária não quer ser a pessoa a informar ao povo que ele tem quase 100% de chances de morrer.
Com a inação da governante — "vamos esperar e avaliar", afinal, "sabem quantas reuniões de 'fim do mundo' já tivemos nesses anos?" —, o trio parte para um tour midiático, vazando a descoberta e a reação da presidente para um jornalista investigativo e marcando presença em um popular programa de TV.
A partir daí, o fato é, finalmente, divulgado para a população, mas recebe reações mistas nas redes sociais, virando meme, hashtag e perdendo nas métricas para a problemática relação entre o famoso casal Riley Bina (Ariana Grande) e DJ Chello (Kid Cudi).
A própria repercussão do filme nas redes sociais — onde ele vem sendo centro de debates acalorados que buscam esgotar todas as identificações possíveis da ficção com a realidade — acaba sendo um espelhamento do próprio retrato construído pela obra.
"Não Olhe Para Cima" analisa, mais do que a pandemia ou outro possível "fim do mundo" contemporâneo, o espírito do tempo, onde toda e qualquer coisa, inclusive um fato científico, vira arena não apenas para embates que resultam em campanhas contra ou a favor, mas também desafios virais, artigos com títulos caça-cliques, megaconcertos com estrelas da música e por aí vai.
Caótico, o filme amontoa tantas caricaturas — dos apresentadores de TV que "douram o Xanax" ao apresentar temas difíceis para o público ao magnata da tecnologia que pretende "mudar o mundo" a partir de práticas exploratórias, passando pela disparada no preço da pá, que vira ferramenta cobiçada com a iminente chegada do asteroide — que acaba sem muito foco ou aprofundamento.
No entanto, o ritmo intenso de referências e desenvolvimentos narrativos acaba justamente por espelhar a superestimulação contemporânea a qual estamos sujeitos. Afinal, se há 15 ou 20 anos "entrar" na internet era um desafio que envolvia um computador e um considerável tempo de espera para que a conexão discada funcionasse, hoje, quando ela está literalmente na nossa mão, há muita gente que daria tudo por uma chance de conseguir "sair" dela.
É possível que "Não Olhe Para Cima" seja visto, até, como uma produção cínica, que contribui para a dinâmica que critica justamente por apostar, também, nesse tom mais ácido e "memeável". Um aspecto notável da produção, porém, é que ela é, ao mesmo tempo, extremamente caótica e também fortemente melancólica.
O humor se dá em um nível de desconforto e constrangimento porque o que separa a farsa montada na produção do lado de cá não é lá muita coisa. A reunião de melancolia, picardia e alguma anarquia, enfim, pode parecer demais para alguns, mas o mundo já não é, também, assim? No fim das contas, a tentativa é encontrar alguma graça (ou quiçá esperança!) no meio de toda essa confusão, apesar dos pesares.
Não Olhe Para Cima
De Adam McKay. 138 min.
Já disponível na Netflix
Sessões no Cineteatro São Luiz
Quando: dias 5, 14 e 19, sempre às 18h30
Onde: Rua Major Facundo, 500, Centro
Quanto: R$ 10 (inteira). Ingressos pela plataforma Sympla ou, a partir do dia 4, na bilheteria do Cineteatro
É necessário apresentar passaporte vacinal e documento com foto
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