Mostra de Tiradentes: de 'Canto dos Ossos' a 'A vida são dois dias'
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Mostra de Tiradentes: de 'Canto dos Ossos' a 'A vida são dois dias'
Selecionados para a Mostra de Tiradentes em 2020 e 2023, respectivamente, o horror "Canto dos Ossos" e a comédia "A vida são dois dias" têm aproximações e distanciamentos analisados por curadores
Em 2020, “Canto dos Ossos”, de Petrus de Bairros e Jorge Polo, foi o grande vencedor da Mostra de Cinema de Tiradentes. Filmada em Canindé, Fortaleza e Búzios, a obra de horror queer foi apresentada como uma coprodução entre Ceará e Rio de Janeiro. Três anos depois, a parceria entre os Estados se repete em “A vida são dois dias”, dirigido por Leonardo Mouramateus. Descrita como uma comédia de erros, a obra disputa em 2023 a Mostra Aurora e terá exibição no evento nesta sexta, 27. Curadores de longas-metragens do evento mineiro, Camila Vieira e Francis Vogner dos Reis apontam relações de semelhanças e diferenças entre as obras, do trabalho de gênero aos modos de filmar o corpo.
Destacando o “atravessamento entre Brasil e Portugal”, a curadora de longas da Mostra de Tiradentes Camila Vieira descreve o filme de Mouramateus como “de personagens, ancorado nas atuações”. “Tem um pouco de romanesco também ao acompanhar dois irmãos gêmeos e o que vai acontecendo com eles pelos diferentes lugares em que cada um vive”, descreve.
Para a curadora, “Canto dos Ossos” se compara mais com outro filme da seleção deste ano. “Ele tem uma posição mais próxima a uma possibilidade de invenção de cinema que podemos encontrar em ‘Xamã Punk’, que é um longa selecionado na Aurora deste ano e que foi realizado no Rio de Janeiro”. Descrito como um “documentário falso de ficção xamânica pós apocalíptica", o filme destacado por Camila é dirigido por João Maia Peixoto. “Penso que o cinema feito no Ceará e que ganhou repercussão na Mostra de Cinema de Tiradentes também reverbera em filmes mais recentes feitos fora do Ceará”, analisa Camila.
Também avaliando as duas coproduções CE-RJ, Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial de Tiradentes e curador de longas, explora as proximidades e particularidades entre “Canto dos Ossos” e “A vida são dois dias”. “São cineastas de uma mesma geração que fazem filmes muito diferentes em alguns pontos. Eles são próximos no sentido de que constroem seus universos baseados no conflito de personagens muito jovens com o mundo. Cada um vai fazer isso à sua maneira, cada um vai ativar o imaginário ao seu modo”, compreende.
“‘Canto dos Ossos’ tem o cinema fantástico, o horror. Ao mesmo tempo é um filme experimental, a gente pode pensá-lo como ‘Lucio Fulci encontra Rogério Sganzerla e Bruce LaBruce’. É um filme queer, de horror, experimental”, adjetiva.
“Já no caso do Leonardo Mouramateus, o filme está bebendo da tradição da dramaturgia e de mise-en-scène do cinema desde Ernest Lubitsch, chegando ao diálogo com o cinema de Matías Piñero, passando por Jean Eustache”, observa. “Ele trabalha essa tradição longeva de um cinema de mise-en-scène a partir de uma sensibilidade e um temperamento muito contemporâneos”, segue.
Nas singularidades, Francis destaca uma “preocupação” que ambos os filmes partilham. “Os dois têm essa preocupação de como filmar o corpo. Mais do que texto representado e figurado, o que eles fazem é encontrar uma maneira de filmar esses corpos, que em alguma medida estão deslocados, desajustados com as suas circunstâncias", resume.
Compartilhando o "fascínio pelo corpo", os longas vão "filmá-lo à sua maneira", aponta o curador. "Um num certo desajuste cômico e o outro numa chave do erótico gore”, avalia. Francis ressalta, ainda, este "fascínio" como aspecto central no cinema do Ceará. “O corpo no cinema cearense é muito forte, não são só nesses dois. Do meu ponto de vista, é o cinema brasileiro que melhor filma o corpo numa diversidade bastante exuberante”, valora.
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