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Os sinos calados do Santuário e a gente ao redor
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

Os sinos calados do Santuário e a gente ao redor

Na estreia da coluna, o repórter Cláudio Ribeiro se volta ao silêncio dos 12 sinos do Santuário do Sagrado Coração, que já dura 16 anos
Tipo Crônica
 Alexandre Lima Santos, funcionário do Santuário Sagrado 
Coração de Jesus há 17 anos, e um dos 12 sinos à espera de manutenção (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA  Alexandre Lima Santos, funcionário do Santuário Sagrado Coração de Jesus há 17 anos, e um dos 12 sinos à espera de manutenção

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Qual a relevância de se falar de sinos que não tocam há tempos numa igreja? Desimportância, descabimento, besteira. É justamente sobre isso. Principalmente quando no entorno do templo, além dos que passam apressados ou quem trabalhe por perto, há calçadas cheias de biografias desgraçadas por fome, miséria, drogas, desemprego, mendicância e noites aquecidas apenas por papelões. Encostam-se na casa de fé para pedir misericórdia e ajuda — muitos por nem terem para onde ir. Querem sobreviver, atravessar mais uma data.

A torre do Santuário do Sagrado Coração de Jesus está calada já por longos 16 anos. Os 12 sinos estão emudecidos por conta da maresia, que alimenta uma crosta de ferrugem no mecanismo que permitia o acionamento automático das badaladas. A última vez que ecoaram foram puxados manualmente pelas cordas. Nem isso mais é feito desde 2007. Falta gente para essa tarefa nos horários pré-determinados.

As 12 peças de bronze, em si, são de valor histórico incontestável. Foram doações de beneméritos e famílias devotadas de muitos anos atrás. Os dois sinos maiores, que trazem citações bíblicas e o rosto do papa Pio XII timbrados em alto relevo, foram doações do empresário Edson Queiroz. Os pequenos também destacam exortações de fé de seus doadores.

A imagem do papa Pio XII e o nome dos doadores adornam os maiores sinos do Santuário
A imagem do papa Pio XII e o nome dos doadores adornam os maiores sinos do Santuário Crédito: FÁBIO LIMA

A própria igreja do Sagrado Coração de Jesus nasceu da dedicação e de promessas feitas pela família Albano, ainda no século XIX, que decidiu ajudar nos custos da obra. Era a “igrejinha dos Albanos”.

A construção começou em 1878, no bispado de dom Luís Antônio dos Santos. A inauguração oficial se deu em março de 1886, já com o bispo dom Joaquim José Vieira. Desde 1901, o local tem a gestão eclesial e administrativa conduzida pela Ordem dos Frades Capuchinhos.

Em 1957, o local por pouco não foi cenário de uma grande tragédia, quando a torre desabou completamente. Infiltrações teriam enfraquecido a estrutura já antiga e tudo veio abaixo. Sorte não haver ninguém naquele momento. Reconstruída, foi reinaugurada em 1962, no desenho piramidal atual. O título de "santuário" foi dado em 1990, assinado pelo então arcebispo dom Aloísio Lorscheider. Um reconhecimento à importância do templo na representação histórica da fé local.

A partir desses sinos calados, desvio o assunto na intenção de abrir um chamado aos gestores, para que amenizem as pavonices de redes sociais ou sovinices de orçamento e assumam mais a demanda dessa gente toda em situação de rua. As prioridades politiqueiras, os conchavos e o desempenho ruim nas avaliações internas e externas não direcionam soluções para o problema.

Este é que é o assunto principal, não os sinos: é tudo mais para falar sobre essa pobre gente. Que atrapalha o tráfego, o sábado; que busca o pão pra comer, o chão pra dormir e a concessão pra sorrir. Os sinos são só um mote. É sobre essa população de rua que só aumenta na cidade, aos nossos olhos, nas calçadas, nas praças, nos cruzamentos. Que tentam existir e o poder público negligencia. Não temos um Júlio Lancellotti aqui por perto, para nos redimir. É justamente no Coração de Jesus, pousados debaixo daqueles sinos mudos, que os desassistidos se socorrem em busca de pão, sopa, esmola.

Amparando e sombreando vidas invisíveis, e dentro da sua rotina, o Santuário tenta se redesenhar, se revitalizar. Segundo seu reitor, frei Raimundo Matos, há proposta para uma grande requalificação. Entre elas, a mudança da entrada principal, mais ampla, pelo lado próximo à Cidade da Criança (rua Pedro I). Com escadas, rampas, portas mais largas. Também a criação de um memorial, no andar de cima, sobre o grande salão de missas.

A novidade poderá ser um mirante ao lado da torre, que permitirá a visão externa do santuário, daquela região central e até alcançar o mar. A acessibilidade ganharia até um elevador. “Estamos conversando com um arquiteto, já há um projeto em 3D. Dará para visitar a cúpula da igreja e tem previsão de uma passarela”, descreve o reitor. Coisa para mais de R$ 300 mil, mas só viabilizada por doações.

 


A administração quer pelo menos reativar o tocador de sinos automático. É coisa para mais de R$ 80 mil, segundo o frei Raimundo Matos. Orçamento feito junto a uma empresa de Minas Gerais. O equipamento chegava a tocar músicas como o Hino de São Francisco e Ave Maria. O tempo também está parado na torre calada. O relógio não gira. É outro tanto de dinheiro que também não há. Mensalmente, o Santuário gasta por volta de R$ 35 mil para bancar as contas.

Chegamos a subir a escadaria minúscula que leva aos tais 12 sinos. É um acesso restrito. A constatação é que o templo todo precisa de uma operação de limpeza, banho de tinta e outros acabamentos, caso essa grande requalificação não aconteça em breve tempo. A reinvenção bem intencionada para o Santuário só será completa se agregar ao projeto o cuidado com aquela gente humilde logo ao lado. Dentro dos parâmetros urbanos, mas, principalmente cristãos. Benditos sejam.


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PS.: Esse espaço se propõe a encontrar grandes biografias anônimas ou de pequenos lugares imprescindíveis, espetaculares. Ou o que olho do repórter e vê, mas a mente não apreende. Há várias grandes histórias numa cidade que não viram manchetes. Mas nada nem ninguém é desimportante. Sugestões são bem-vindas.

Foto do Cláudio Ribeiro

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