Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
O barulho do trânsito invade o ateliê de Alfredo Lacet, mas ele gosta, prefere assim. É quando o sinal se fecha que sua galeria se mostra para novos clientes. Mas a menina, que passava sempre em frente, planejou mais, quis ser amiga e conhecer o artista. Até presenteá-lo
Queria ter testemunhado o momento. Pela beleza da cena, do gesto infantil, sincero. Ainda há poesia por esta cidade — tão mal cuidada e que gostamos tanto. Menos beleza do que queremos e precisamos.
Ao lado da mãe, a menina passava costumeiramente em frente ao ateliê, indo para a escola ou algum itinerário da rotina. Admirava aquele senhor com cara de avô, cabeça branca, semblante simpático, compenetrado, cercado de tintas, pincéis, telas e várias paletas, muitas cores.
Determinada, anunciou para a mãe: "Quero ser igual a ele. Quero dar um presente pra ele. Vou fazer um quadro". Ana Sofia, de 7 anos, planejou conhecer e ser amiga de Alfredo Lacet, de 77. Mas se viu principalmente preenchendo suas telas como as dele.
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Quem passa pela rua Pinto Madeira, quase na esquina com João Cordeiro, na Aldeota (mesmo que o Google queira convencer que ali é Centro), já viu Lacet no seu ambiente de trabalho. A portinha nº 1.077 é seu ateliê, um espaço de 4m x 5m, onde a exposição é aberta sempre que o sinal se fecha. O artista cria permanentemente e a clientela, da janela do carro, na moto ou na calçada, acessa as obras.
Pelas dimensões do ateliê, Lacet fica encoberto de suas abstrações, paisagens cearenses marinhas, casario do período barroco, figurações, retratos, texturas. Mimetiza-se também sujando bermuda e camiseta com a ponta dos pincéis.
Os motoristas interagem: "Quanto é esse?", "Faz por quanto aquele?", "Se trouxer um desenho, o senhor faz?". "Eu gosto que seja assim mesmo, eles veem na hora o que está sendo feito", consente o pintor. Acena para um: “Esse comprou duas telas minhas”. “Parei, estacionei ali do lado e vim comprar. Dois retratos, estão lá em casa”, assente o cliente, saindo no verde. Lacet responde sobre valores quando a pergunta de alguns não soa desrespeitosa - porque o contrário também acontece. “Tem os que passam zombando, mas não ligo”.
Francisco Alfredo Cavalcante Lacet é pernambucano. O sobrenome que assina as obras é do bisavô francês (“veio com três irmãos morar na Paraíba”). Radicou-se no Ceará em 1982, quando era bancário. Foi sua última profissão antes de se ver sem emprego, sem renda. Passou a viver de vender quadros.
Aos 12 de idade, no colégio Agamenon Magalhães, em Recife, precisou escolher um curso técnico. Havia mecânica, serralheria, fundição... "Escolhi na hora o que ia cursar: 'Bota pintura'. Foi assim que comecei". Era habilidoso com desenhos.
Da iniciação (desenho artístico, pintura a óleo e aquarela, desenho em bico de pena) buscou o conhecimento clássico — equivalente daqueles tempos à atual formação em Belas Artes, segundo ele. Mas tirou salário em outras jornadas.
Lacet foi oficial do Exército (galgou a 2º Tenente) e trabalhou por 25 anos como bancário, nos extintos bancos Irmãos Guimarães e Banorte, por várias praças do país. Queria ter sido arquiteto (cursou desenho arquitetônico também), mas o expediente bancário se sobrepôs aos sonhos profissionais.
Tinha 36 anos quando o Banorte o transferiu para o Ceará. E aos 48 da vida, em 1994, depois do clichê de “relevantes serviços prestados”, recebeu a demissão. "Decidi viver disso, da arte. Achava que não teria mais colocação, né, um bom emprego", relembra de si.
A pintura não se impôs aleatoriamente, mas oportuna e necessária. Os três filhos se criaram em outras áreas, um médico, um advogado e uma advogada. Moram em Minas Gerais. Ninguém nas artes? "Dois (dos quatro) netos são músicos. Um é pianista clássico", orgulha-se. É casado com a cearense Belisa Gentil.
Fiquei inquieto para saber como Lacet consegue se inspirar, achar tons e sombras certas, com aquele barulho do trânsito atravessando nossa conversa. "Ah, já me acostumei". Parece gostar. Produz cerca de 20 telas por mês. E, antes que me cobrem, achei indelicado perguntar valores de suas obras. Essa é uma questão entre cliente e artista.
No fim deste 2023, Alfredo Lacet vai embora do Ceará. De vez. Decidiu ir para perto dos filhos e netos, em Juiz de Fora. “Na região lá tem um casario que gosto muito de pintar”. Já pensa em trabalhar série e expor. Quem sabe até um primeiro autorretrato, “quem sabe”.
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Numa manhã que não lembra a data, Lacet mergulhado nos traços, mãe e filha pediram permissão para entrar. Ana Sofia chegou com sua tela nas mãos, feita para o "ídolo". Do cumprimento da mãe e explicação sobre a visita inesperada, a garota esticou seu braço e entregou a Lacet o que havia prometido (também a si) para seu pintor favorito.
Um céu noturno, estrelado, o mar azul, de ondas brancas remexidas, e as dunas em tons de rosa. Escolhas harmônicas, simples. Singulares e integradas. A tela é linda!
Alfredo Lacet guarda a história e o presente com carinho. Contou a passagem e os olhos marejaram. Diz que sempre se emociona. Gosta de contemplar essa lembrança. "É por isso que ainda vale a pena acreditar no ser humano".
Ana Sofia é uma grande artista!
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