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O novo recomeço de Nildo, que perdeu tudo para o fogo, menos a Bíblia e o cão e a fé
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

O novo recomeço de Nildo, que perdeu tudo para o fogo, menos a Bíblia e o cão e a fé

A vida de Nildo já se destruiu antes, igual seu barraco que o fogo levou uma semana atrás. Mas ele quer se reerguer mais uma vez
Nildo ao lado do
Foto: Cláudio Ribeiro Nildo ao lado do "amigo" Scooby Doo", entre os destroços do barraco perdido para o fogo

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A vida de Nildo, de 41 anos, pegou fogo algumas vezes. Só a mais recente foi no sentido literal. As demais situações lhe abrasaram os pertences, a alma. Triste, mas ele é das pessoas que têm experiência em perder tudo e se refazer. É sofrido. O tudo de quem tem pouco é muito, mas quando o seu era suficiente, ele achou que fosse pouco. Era um bastante e ele não soube cuidar. Hoje admite os erros cometidos.

José Nildo Cassemiro Nunes de Brito tinha bom emprego, era caminhoneiro. Teve casa, boa morada no Eusébio. Guiava carro próprio, um Corsinha ajeitado. E tinha um casamento. “Era feliz”, do que relembra. A frase finda aí. A filha hoje tem 4 anos. Dela perdeu o que mais queria nesses dias atuais: o convívio, acompanhar o crescimento. O ter foi perdendo vez para o perder, para o errar. Usou drogas, “todas — mas não bebo, não sou ladrão, nunca roubei, nunca fui preso”. Não conseguiu sair da necessidade do torpor quando mais precisava. Ruiu.

O recomeçar parece mais ser a sina. O perder é casualidade. E, há exatamente uma semana, aconteceu mais um desses momentos. De fogo e ruína. Agora no sentido exato da palavra. Na noite do último sábado, 5, um incêndio destruiu o barraco onde Nildo se abrigava, no canteiro central da avenida Juscelino Kubitschek, no Passaré. Fica em frente ao hospital da Rede Sarah, de reabilitação motora. Poucos minutos e tudo havia sido queimado. Quase tudo.

Na verdade, aquele era seu lar de fato, não apenas um abrigo improvisado. Era sua casa, seu teto. Estava ali havia um ano. Ergueu com tábuas achadas na rua, lona plástica e paciência. Foi feito para dormir, mas imaginava partir dali como mais um recomeço. Tinha ventilador, uma tevê, um celular, muda de roupas, seu rodo de limpar para-brisas e “uns mil reais, acho” — que vinha juntando para comprar algo a mais das necessidades e possibilidades. As labaredas se alastraram rapidamente e consumiram aquilo que era o seu tudo.

O fogo lhe levou até o nome completo, pois queimou todos os seus documentos. “Meti a mão no fogo mesmo. Me queimei, mas consegui salvar muito pouco. Foi embora tudo”, conta. Forma o rosto de choro, mas se esquiva da tristeza imediatamente. Resigna-se com a tal da sina.

— E você não tem ninguém para te ajudar, Nildo?
— Tenho sim. Tenho ele aqui. Meu melhor amigo.

Aponta para Scooby Doo, sem raça definida, de pelagem rajada, que rosna protegendo o amigo humano, mas entrega simpatia logo em seguida. O cão estava amarrado ao pé da mangueira, que de dia sombreava o barraco. Por pouco as chamas também não o atingiram. Quando o incêndio começou, perto das 20h30min, Nildo trabalhava no semáforo, a menos de 100 metros. Foram os latidos do amigo que o fizeram perceber o clarão do fogaréu.

A pergunta anterior era para saber de familiares, mas Nildo diz que moram entre Juazeiro do Norte, sua terra natal, onde vive a mãe, e São Paulo, onde reside o pai. Os irmãos se espalham entre os dois lugares.

— E sua filha, já está sabendo? Contou pra ela?
— Não. Tenho vergonha.

Ali seu choro foi mais visível, mesmo que tenha virado o rosto tentando esconder a emoção. Lembrar da filha foi a tristeza indisfarçável. A menina mora no Eusébio com a mãe. Não sabe quando a viu pela última vez. Com os novos fatos, não será por agora, por enquanto.

Preferi só mencionar aqui a história da Bíblia que não pegou fogo, mesmo diante de todo o estrago. Ficou chamuscada, as páginas com as bordas queimadas, mas perdeu apenas a capa. Seguiu legível. Nildo conta que a ganhou de uma mulher, tempo atrás, quando o carro dela enguiçou perto de seu barraco. “Até o bombeiro chorou aqui quando viu a Bíblia inteira. Foi ou não foi Deus?”, celebra. 

Apenas chamuscada, a Bíblia de Nildo escapou do incêndio(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Apenas chamuscada, a Bíblia de Nildo escapou do incêndio

— Tem algum trecho da Bíblia que mais gosta?
— O Salmo 101.

(“Cantarei a misericórdia e o juízo; a ti, Senhor, cantarei. Portar-me-ei com sabedoria no caminho reto. Quando virás a mim? Andarei em minha casa com um coração íntegro".)

Nildo tem deixado a Bíblia queimada, com as páginas abertas, sobre um banquinho em frente às cinzas do ex-barraco. Está erguendo outro ao lado. Improvisou uma tenda para guardar os pertences, tem dormido nela. Pessoas que passam no local fazem doações. Um homem, que não quis se identificar, desceu do carro, entregou duas sacolas com roupas e R$ 20 para o almoço — que até aquela hora da conversa, perto das 11h30min, Nildo ainda não tinha garantido. Iria catar mangas — ganhou o apelido "Manga" por isso.

A biografia de Nildo precisa de mais boas histórias. Mais continuidades do que recomeços. A vida não precisa ser igual ao seu barraco, que o fogo destrói facilmente. “Vou recomeçar”. Já juntava madeiras, linhas, iria conseguir pregos. “Quero construir outro logo”, para ele e para Scooby. Quer contar para a filha que está bem de novo. Mais uma vez.

Para ajudar: doações em materiais e mantimentos no local (avenida Juscelino Kubitschek, em frente ao número 4500 - hospital Sarah, bairro Passaré) ou via Pix, pela chave (85) 99612-2023 (Francisco Clailton)

Foto do Cláudio Ribeiro

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