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A coerência de Adalberto Barreto: "Tem coisas que o fogo não destrói"
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

A coerência de Adalberto Barreto: "Tem coisas que o fogo não destrói"

O psiquiatra seguiu na palestra, sobre a arte de viver e ser feliz, mesmo quando seus livros, diplomas e memórias eram consumidas num incêndio em seu apartamento. Em vez de sofrer pela perda material, Adalberto Barreto usou o episódio como ensinamento
O INCÊNDIO não tirou o sorriso de Adalberto Barreto (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo O INCÊNDIO não tirou o sorriso de Adalberto Barreto

Adalberto Barreto, 74 anos, precisou pôr em prática, numa decisão tomada em segundos, tudo o que havia difundido em teoria dos muitos anos de estudos e conhecimento. Foi o tempo entre uma fagulha, talvez iniciada num abajur não desligado que entrou em curto, e a voracidade de um fogaréu. Rapidamente se foram muitos de seus bens materiais e memórias de uma jornada acadêmica de mais de quatro décadas.

Mais de 40 anos de aulas, certificados, diplomas, anotações, escritos de seus mestres e dedicatórias de quem admirava, postos numa biblioteca particular com mais de mil livros. Papéis que viraram combustível. No último dia 19 de setembro, no bairro Meireles, seu apartamento foi consumido completamente pelas chamas, mas o incêndio lhe levou "apenas isso", como diz. Não o aprendizado das leituras e conhecimento adquirido e desenvolvido — três graduações, uma especialização, dois doutorados em universidades na França.

Admite que sentiu a dor pelas perdas, mas não sofreu. Viveu o baque por um instante breve, mas, ao descrever que não estava colado àqueles pertences ("eu não sou um apartamento, não sou um diploma"), transformou o momento em ensinamento para quem o assistia.

A informação sobre o incêndio chegou-lhe durante uma palestra para mulheres empresárias de Fortaleza. O tema da palestra era "A arte de viver e ser feliz", programação do Setembro Amarelo, de combate à depressão e ao suicídio. Médico psiquiatra, antropólogo, professor universitário aposentado, Barreto é renomado mundialmente por sua atuação com terapias comunitárias e práticas integrativas através do projeto Quatro Varas.

Sua proposta de saúde mental em comunidades carentes e periféricas, criado em Fortaleza no final dos anos 1980, no bairro Pirambu, hoje é replicada em 46 países pelos cinco continentes. Até uma hora antes do evento, ele havia participado, como sempre às terças-feiras, de uma live com coordenadores do projeto em países de língua francesa entre Europa e África.

Quando o celular de Barreto passou a tocar insistentemente durante a apresentação, pediram que atendesse, poderia ser algo de urgência. Era. Na ligação, o síndico do prédio onde mora: "O senhor precisa vir imediatamente, seu apartamento está pegando fogo".

Barreto tomou o susto inicial, avisou aos presentes sobre o incêndio, mas surpreendeu ao decidir ("muito rapidamente") que não iria embora. Considerou que abandonar a palestra não iria mudar muita coisa. Os bombeiros já atuavam no local. Ele até nem tinha noção, naquele momento, que o fogo realmente estava alto — as imagens das chamas e fumaça saltando pela janela já se espalhavam pelas redes sociais e noticiário dos portais. Nem se soube no dia que ele era o dono do imóvel que crepitava.

De janeiro a setembro deste ano, o Corpo de Bombeiros atendeu 234 ocorrências de incêndios em unidades multifamiliares. O número desses nove meses é maior que o total de 12 meses dos quatro anos anteriores: 2019 (133), 2020 (171), 2021 (205) e 2022 (225). 

Subitamente, Barreto decidiu transformar a experiência pessoal em reflexões para a plateia. Usou a situação como mote para o queria transmitir. "Olha, disseram aqui que meu apartamento está pegando fogo, mas eu não vou sair. Decidi ficar com vocês aqui. O meu trabalho é esse". O psiquiatra tomou o episódio como uma questão de desapego, mas principalmente de coerência. Para muitos, passou até como coragem. Poucos não teriam ido embora para tentar saber mais do que sobraria entre as cinzas. Barreto só foi ao local duas horas depois, já à noite. Quando subiu para ver os destroços, inalou fumaça, o ardor dos olhos e dos pulmões vieram no dia seguinte. Interpretou que foram respostas do corpo às dores da perda.

"Eu não sou um apartamento. Meu apartamento está pegando fogo, mas estou inteiro aqui. Será que se eu fosse correndo eu poderia salvar pelo menos os meus diplomas originais, dois doutorados na Europa? Eu não sou um diploma, eu sou uma pessoa. Para que é que eu fiz essa formação toda? Foi para agir na prática", compartilhou durante a palestra.

"Então fui fazendo a reflexão e ao mesmo tempo pensando alto com elas (empresárias). 'Ah, mas todos os meus livros estão sendo queimados, estão virando cinza’. Sim, mas os que eu li, as ideias deles estão vivas na minha mente, estou aplicando. As cinzas o vento leva, mas o conhecimento, o saber, estão me transformando”. Acredita que “essa cinza tem que ter alma, tem que ter filosofia de vida, tem que ter valor”. É o que nem o fogo ou a morte destroem, segundo ele

Barreto fala de uma mística que o levou a criar a terapia comunitária, onde diz que para cada destruição material, temos que fazer uma reconstrução simbólica. “E foi o que eu disse, tá na hora de eu aplicar minhas teorias, tudo o que eu sei. Dentro da coerência, fiz uma opção que é cuidar dos vivos. Sou um cuidador, um terapeuta. Tô cuidando dos vivos, lá o que está queimando é matéria”. E assim o fez. Dos bens materiais e lembranças perdidas para o fogo, Barreto reconstruiu que “tudo ali é importante, mas não é o mais importante. Eu sou amado pelo que eu sou, não pelo que eu carrego”.

Seu apartamento, na rua Frei Mansueto, a um quarteirão da avenida Beira Mar, foi adquirido 38 anos atrás, ainda na planta. Barreto voltou ao apartamento só mais duas vezes, para orçar a reforma. O prejuízo chega a R$ 120 mil, entre as obras do seu e de dois imóveis vizinhos, nos andares acima e abaixo, com estruturas e pertences afetados. Aposentado desde 2016, está custeando tudo dos outros atingidos dentro de suas possibilidades econômicas. A reforma do seu apartamento deixará por último. Aceitou a ajuda da irmã e foi morar com o que sobrou num quarto disponível no apartamento dela. Tem outra morada, mais funcional, na praia do Morro Branco, em Beberibe, onde também desenvolve o projeto de terapia comunitária integrativa.

Barreto disse ter se surpreendido ao ser abraçado por uma rede de afeto que nem imaginava. Os vizinhos foram compreensivos, recebeu ofertas de morada, até ajuda em dinheiro numa vaquinha online criada por amigos — mas nem sabe de valores disponíveis, diz não ser do seu perfil.

“Para mim foi uma oportunidade de mostrar do que eu dizia para os outros. Nós temos o lado material e o imaterial. Quando há uma destruição material, se vê o que é imortal, o que é eterno. É isso que sustenta a gente, é o que é eterno, não é o que você tem de objeto, de coisas. Você tem amigos, pessoas disponíveis, essa rede de afeto em torno de você, é isso que é eterno. Acho que, aos 74 anos, estou no caminho certo, o do desapego”.


Foto do Cláudio Ribeiro

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