Elza & Almir: sobre o que devemos guardar na memória
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Elza & Almir: sobre o que devemos guardar na memória
É "avassalador, chega sem avisar", como em "Aquilo que dá no coração", de Lenine. É o sorriso que "prende, inebria, entontece", como nos versos de "Fascinação". "É o amor, que mexe com minha cabeça e me deixa assim", como no hit sertanejo. É infinito enquanto permanece. É como o agora de Almir & Elza
Até quando você será capaz de lembrar do seu amor? Qual será a lembrança mais tardia, o registro inesquecível? Qual a música, a imagem, o toque, o cheiro que ficará guardado? E em qual o momento esse amor... se apagará? Como se tivesse sido apenas um devaneio, uma imaginação desamarrada. O quê do amor será esquecido?
Essas são questões que Elza & Almir não se importam. O amor deles não problematiza. Não há contagem de tempo. É agora, está acontecendo. A coisa mais relevante para hoje é estarem perto um do outro. O quanto for.
Ambos vivem sob um diagnóstico do que lhes rouba a memória compassadamente, dia a dia, sem uma dor aparente. O transtorno desliga células neurais, mas também atrapalha sonhos e interrompe o direito ao futuro. Desmonta aos poucos a capacidade de recuperar as próprias histórias, as antigas ou as recentes. Doenças neurodegenerativas, de vários tipos, acometem mais de 1,7 milhão de pessoas com 60 anos ou mais no Brasil, segundo a Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz). Fora quem não recebe o diagnóstico.
Nem o cenário projetado para que deslembrem de coisas e pessoas e rotinas e histórias têm sido páreo ao semblante reavivado de Almir & Elza. Sorriem para tudo, enxergam flores, imaginam valsas, juntaram-se, como é do amor. Elza & Almir estão apaixonados.
Ela, aos 76, e ele, aos 62, se encontraram pela primeira vez apenas quatro meses atrás, entre o acaso, a sorte e a necessidade. Elza Morais foi cabeleireira por 30 anos. Teve quatro filhos. Separou-se 40 anos atrás. “Nunca mais havia sentido isso”, palavras dela. Passou a morar no Lar para Idosos JD’Mello, em Caucaia, em 18 de julho.
Quando estava na casa da filha Alexsandra, estava arredia, inquieta, os dias apenas passavam. A vida já não lhe concedia perspectivas. Suas rotinas tinham sinais mais evidentes de alguma desorientação. Ela cita “o que antes chamavam caduquice, do jeito de falar direito”. Os traços da doença, mesmo leves até hoje, foram diagnosticados três anos atrás, segundo a filha. Mas Elza diz estar se sentindo “outra”. Admite ter “uns esquecimentos” — todos nós os temos.
Almir Dantas foi admitido no mesmo local menos de duas semanas depois, em 1º de agosto. Também tem quatro filhos, é separado há vários anos. Havia sido diretor de faculdade particular, especialista em gestão escolar e recursos humanos, mestre em psicanálise, graduado em história e pedagogia. Era poliglota. Também ensinava artes marciais. Era atleta e mestre.
Nele, o Alzheimer tem sinais mais avançados. Foi confirmado quatro anos atrás. A fonação não o ajuda há algum tempo. Tanto fala como se movimenta com dificuldade. Tinha até picos de agressividade, segundo relatado pelos parentes na internação. Almir teve melhoras visíveis desde que conheceu Elza. Os dois tomam medicações que ajudam a reduzir os danos neurais e prorrogam os efeitos mais severos.
A assistente social Magda Alves, diretora do JD’Mello, um dos 16 lares particulares para idosos em Caucaia, conta que o lugar hoje tem 32 pacientes e já formou outros casais em 10 anos de existência, mas Almir & Elza são o da vez. Quando saem para os fins de semana com suas famílias, tanto ela como ele cobram-se para que voltem logo. Sentem ciúmes e saudades. "Ela e ele sentem falta um do outro".
Elza até faz charme para contar daquela primeira troca de olhares entre eles. "Quando vi, ele estava olhando pra mim", descreve. Com suas poucas, certeiras palavras, Almir ri e balança a cabeça confirmando tudo. A memória de ambos guarda esse primeiro instante.
Desde que Elza & Almir se viram, o que era incômodo para eles já não aparenta. Não se negam ao beijo para a sessão de fotos. Batom e maquiagem nela, a arrumada no cabelo. Nele, uma camisa mais moderna, o pente ajustando os fios, a pose mais correta. Ao fundo, durante os cliques, Luiz Gonzaga cantava: "Ai quem me dera voltar/ Pros braços do meu xodó/ Saudade assim faz roer/ E amarga qui nem jiló".
Estão mesmo apaixonados? — pergunto a obviedade, intencionalmente. Elza mal deixa a frase terminar: "Eu estou demais". Almir endossa numa gaiatice: "Eu também. Ora, se...".
As famílias fazem contatos, trocam informações, gostam do namoro, da evolução no comportamento dos dois. Houve permissão para que a relação virasse uma história de jornal. E, apesar do pouco tempo, o tema casamento já é comentado. “É um assunto que a gente conversa, sim. Vou esperar que ele melhore um pouco. Mas se eu resolver, quero casar com ele”, revela Elza. Será no próprio lar? — tento adiantar algo. “Não sei se será aqui. Quero uma coisa simples”. Não querem pressa para esse futuro.
O que você sente por ela, Almir? "Tudo". Gosta de estar perto dela? "Muito". Não se segura, seu olho brilha também com lágrimas. Elza logo o defende: “Ele é muito choroso. Com tudo. Diz que sou a cara-metade dele. Eu tinha até esquecido como era gostar assim”, amplia. “Ele é lindo, não é?”, fala olhando para ele. Almir havia dito pouco antes que “ela é linda”. E respira outra frase curta, a que mais resume sobre o que estão experimentando: "É bom".
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