Papai Noel existe e é pedinte numa esquina de Fortaleza
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Papai Noel existe e é pedinte numa esquina de Fortaleza
Numa calçada do bairro Jacarecanga, Papai Noel pede esmolas e atenção. O quarto onde mora, em vez de enfeites, tem o chão coberto de itens acumulados por anos. Em vez de dar presentes, Vanderlei Oliveira veste-se o ano todo como o velhinho caridoso para pedir ajuda
Este não é um conto de Natal feliz. E não é ficção. Em vez de dar presentes, Papai Noel é pedinte. Ele senta numa esquina e espera que o percebam e o ajudem com trocados, comida e qualquer caridade.
Sua barba branca está com os pêlos mal cuidados. A roupa vermelha está encardida, as botas têm pés desiguais. O trenó é uma bicicleta cargueiro velha, freio desregulado, pneus carecas.
A luva é preta — se branca fosse, estaria encardida, como a borda da manga, o colarinho e a linha da casa dos botões do blusão. O gorro está rasgado, enxertado com plásticos por dentro para ficar de pé na cabeça. As botas são dois sapatos desiguais. O velhinho precisa de ajuda.
Em vez de luzes enfeitando, a casa do Papai Noel é bastante pobre. Vive num quarto de 2x2 metros, em condições insalubres, nos fundos da casa de um de seus irmãos, na fronteira entre os bairros Jacarecanga e Pirambu. O espaço é um monturo de lixo, quinquilharias, roupas velhas, coisas catadas, largadas, acumuladas.
O chão é literalmente encoberto de restos de plásticos, papéis, borrachas, amontoados de vários objetos que alguém não quis mais, descartados. As roupas de trabalho são as que mais usa diariamente. Passa o dia no figurino vermelho. Ficam penduradas em alguns móveis encobertos pelo lixo de dentro do quarto. "Queria limpar isso aqui tudo, mas não tenho dinheiro", lamenta-se.
Essa casa/quarto de Papai Noel não tem janela, as paredes são escurecidas de sujeira, infiltrações, fungos. É nocivo, indigno para alguém dormir, respirar, viver. Há uma lâmpada acesa, que não ajuda tanto a enxergar. O sol vaza por telhas quebradas. Na chuva, as goteiras respingam. Uma rede armada cruza o cômodo. “Tá aqui o que eu tenho”, e mostra a televisão de tubo e um videocassete.
Em vez de cartinhas, a estante com a TV tem uma prateleira cheia de boletos, vencidos e por vencer. A aposentadoria é engolida pela cobrança de vários empréstimos consignados que fez para tentar escapar de outras épocas. “São 30 empréstimos”. Esse Papai Noel não tem para si, então pede qualquer ajuda para tentar virar o dia.
Pelo meio da tarde, Papai Noel chega à esquina das avenidas Filomeno Gomes com Francisco Sá, em frente à pracinha do Liceu. Encosta a bicicleta velha — é o seu "trenó" — e espera. A figura chama atenção, mas mesmo que lhe notem, os olhares são, na maioria, desinteressados. É mais um invisível numa esquina.
Quando a perna lhe dói menos, inchada de velhice e má circulação, atravessa entre os carros no sinal fechado. Sacode uma panela com algumas moedas, cantarola alguma coisa e algum caridoso lhe pinga mais moedas. Vez em quando alguma cédula. "Você me deu sorte, viu? Olhaí, ganhei cinco reais em poucos minutos. Às vezes passo um dia pra ganhar pouco mais que isso", comemora.
Também estende a mão em frente às lojas Americanas, na entrada pela rua Barão do Rio Branco, no Centro. E na calçada do shopping no bairro Benfica. Todo dia, no fim da manhã, toma sopa de graça no “Mesão” da rua Padre Mororó, que distribui refeições para pessoas em situação de rua. Mesmo sem dinheiro para si, compra pipocas e guarda no seu “saco”. Para presentear.
Primeiro passou Wallace, 2 anos, que vinha da escola com a mãe. Depois foi Heloísa, mesma idade, passeava com a mãe. As duas crianças estenderam a mão, chamaram o velhinho. Ganharam um abraço, o sorriso e a pipoca industrial que o Noel maltrapilho havia comprado. Aquela fantasia encarnada, na imaginação do menino e da menina, era apenas aquele outro personagem cheio de felicidade, sonhos e presentes.
Vanderlei Oliveira Viana tem 78 anos. Quando perguntei a idade, surpreendeu com uma alegria efusiva. Fechou os punhos e sorriu até com um grito. "Rapaz, você veio no dia certo. Ó, meu Deus. Hoje é meu aniversário. Estou completando 78 anos. Nasci no dia 13 de dezembro de 1946. Hoje é 13, meu aniversário, 78 anos. Você chegou no dia certo". Fui na casa dele depois do primeiro momento de nossa conversa e a informação estava confirmada na sua certidão de nascimento.
Ele é Papai Noel há três anos. “Eu não me visto de Papai Noel. Foi o espírito de Papai Noel que entrou em mim”. A barba cresceu no começo da pandemia. Virou um ganha-pão. E sai contando que, antes de esmolar, já teve vida melhor. De morada própria, carro e posses que lhe davam mais respeito perante quem o visse.
Mas sua fala, pouco linear e às vezes quase desconexa, imediatamente toma outro rumo. Além das vestes de Santa Claus ou São Nicolau do Jacarecanga, também já teria sido Batman, Homem-Aranha, Zorro, Homem de Ferro, até ninja. Andava a cavalo, teve "um batmóvel". Comprou jangada, um barco a motor, banca de revista. E lança esse multiverso de versões anteriores.
Pergunto se tudo aquilo que contou foi verdade. Ele reafirma. Então aconteceu, é o que está em suas lembranças desordenadas.
Dos empregos de carteira assinada, diz ter trabalhado quase sempre de motorista. De ônibus, de caminhão, de carro particular. Um dos patrões era um juiz — "a mulher dele era prima do Castello Branco presidente da República".
Hoje trabalha ali, de Papai Noel. O ano todo, não apenas nos dezembros. De dentro dos veículos, alguns que passam gostam de xingar, lançam palavrões, chamam de doido, tiram sarro. “Gostam de me difamar”, reclama. E ele, que precisa de caridade e ajuda mais do que a lenda comercial divulga, busca um Natal apenas de sobrevivência. Para si, principalmente.
No próximo dia 24, das 19 às 23 horas, fará um bico como Papai Noel numa casa na Via Expressa. Ganhará banho, roupa nova e um cachê.
Este Natal será um pouco melhor!
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