Testemunha do encalhe do navio Mara Hope: "Eu estava lá dentro"
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Testemunha do encalhe do navio Mara Hope: "Eu estava lá dentro"
Seu Reu, pescador da praia do Poço da Draga, conta detalhes daquela noite, de quase 40 anos atrás, quando ele testemunhou o incidente em que o navio ficou à deriva no meio do mar de Fortaleza, até parar encalhado definitivamente e virar um monumento da cidade. Até hoje, é para onde ele vai diariamente colher peixes
Foto: FCO FONTENELE
Evilásio Bernardino de Sousa, o seu Reu, de 83 anos
Poucos daquele trecho da comunidade Poço da Draga sabem sobre quem seja Evilásio Bernardino de Sousa. Mas a procura por “Seu Reu”, ali na ponta do chamado Havaizinho, é muito mais fácil. “Lá está ele. Está ali todo dia, nos barquinhos dele. Já deve ter ido pescar hoje ali pelo Mara Hope”, indica um vendedor nas proximidades.
Nascido em Aurora, município do Cariri cearense, região que um dia já foi mar, fugiu-se menino para Fortaleza. Tinha 8 anos de idade. A mãe havia morrido de doença do pulmão, o pai havia saído e largado duas crias com a avó, naquele tempo sentiu que precisava morar numa cidade maior. “Ali não via futuro pra mim”. Lembra que nem escola tinha. Fugiu.
Partiu de trem para a Capital. Foi para onde tinha mar sem nem saber de sua sina. Mesmo com uma tia morando na rua Castro e Silva, preferia dormir na estação. “Ali do lado era a Cadeia Pública, a Chefatura de Polícia. Comprava coisas para os policiais, para os presos, fazia esses serviços”. Desses bicos que pegava, também aprendeu a pescar, que virou sua profissão. Aos 19 anos, era trabalhador do mar. “Passava três meses embarcado, pescando”. Lamenta-se que a oportunidade e prioridade de estudar nunca aconteceu.
Todo cedo de todo dia, já há muitas marés, o senhor de 83 anos, a pele engelhada, rugas de sol e tempo, encosta-se em seus dois paquetes que “guarda” na faixa de areia. Vem de casa. Mora no Arraial Moura Brasil, “ali por trás do IML”, indicando onde hoje é a sede da Perícia Forense (Pefoce). Escolhe um dos botes e rema até o entorno do encalhe ocorrido quase quatro décadas atrás em Fortaleza. É sua rotina. Seu Reu vai colher peixes. Com linha, anzol e galões (redes).
Tainhas, biquaras, pirambus, sardinhas, lancetas, palombetas, cambumbas, paruns, carás-do-mar, até cavalas e serras. Até meros, que chegam a mais de dois metros de comprimento e proibido de pesca pelo risco de extinção, nadam naquelas águas. A espécie costuma ser vista em embarcações naufragadas ou encalhadas, como o Mara Hope. “Ali tem toda qualidade de peixe, meu amigo. É só tirar o que se precisa”, descreve, assumindo intuitivamente um papel de guardião do local.
Justamente no dia da nossa conversa, seu Reu havia se demorado pouco no mar. Voltou sem o pescado no cesto. “Quando não tem, volto no dia seguinte. Sem problema. Hoje a mulher vai ter que comprar peixe pro almoço em casa”, brincou. Não se lamenta, tem mais mar no outro dia.
Seu ancoradouro particular é ao lado da cabeceira de acesso da centenária Ponte Metálica, ou Ponte Velha. Naquele ponto, o mesmo olhar também alcança mais de perto o cargueiro encalhado, que subiu ao status de monumento da orla de Fortaleza.
Seu Reu viu e viveu diretamente o que pode (?) ser considerada uma página histórica local — ou pelo menos constar em nota de rodapé. No encalhe do Mara Hope, ele estava lá, dentro do navio, naquela noite de 5 para 6 de março de 1985, quando a embarcação esteve à deriva, depois de soltar de amarras na faixa do porto do Mucuripe, e travou definitivamente nas águas rasas da Praia Formosa.
“Estava lá, sim. Eu tinha sido contratado, trabalhava lá dentro de vigia, com outro colega. O navio estava amarrado ali perto do porto (do Mucuripe) e iam trazer para consertar aqui no estaleiro (da Indústria Naval do Ceará-Inace). Aí de noite acordamos com o navio balançando demais. Foi um susto. Ele estava solto. Boiou até parar aqui onde está”, relembra.
O outro vigilante, ele não recorda o nome, perdeu contato. Dois dias depois do incidente, ainda cuidando do cargueiro, seu Reu descreve que acordou com vozes diferentes dentro da embarcação. “Era gente que tinha subido lá pra roubar as coisas tudo. Fiquei com medo. Aí pulei na água. Fui nadando, bati os braços até a praia. Saí ali perto da Marinha”, detalha.
O que era o petroleiro hoje equivale a um quarto de seu tamanho original, na comparação com imagens da época do encalhe. Mesmo embelezado como silhueta em fotos de fins de tarde com sol, agora é uma grande caixa enferrujada dentro da água, carcomida lentamente pela maresia.
O navio já teve outros nomes. “Fabricado em abril de 1967 pelo estaleiro espanhol Astilleros de Cádiz, foi primeiramente chamado de Juan de Austria. Posteriormente foi renomeado de Asian Glory (1979) e, por fim, Mara Hope (1983)”, contou o colega Carlos Mazza em 2020, em reportagem aqui no O POVO.
Na paisagem de sua lida diária, a Ponte Velha divide a cena na mesma condição de ruína histórica. Com o concreto mordiscado e os ferros expostos nas longarinas, não tem mais chance de ser recuperada. Apesar de interdição da Prefeitura no ano passado, o local segue acessado por banhistas. Arriscam-se em mergulhos ou saltos acrobáticos. Ou na possível fadiga das pilastras. O perigo é real, visível.
Desde os primeiros anos até a metade do século passado, quando o Porto do Mucuripe passou a funcionar, aquele foi o principal píer para embarque e desembarque de mercadorias transportadas em navios que atracavam em Fortaleza. "Lembro dos guindastes, do trilho que tinha em cima, a carga ia direto para os navios".
Nas suas idas e retornos das pescarias, seu Reu se queixa de sempre presenciar salvamentos. Ou os casos fatais junto à ponte. “Vivem se afogando aí. Eu que botei uma escada (de ferro) lá na ponta, onde eles saltam. Sobem logo por lá. Pra não terem que nadar. Botei pra ajudar”, diz o pescador. A generosidade também está entre seus afazeres de homem e mar.
Seu Reu gosta de estar ali, entre o Mara Hope e a Ponte Velha. “Às vezes venho aqui para a praia até à noite. Acostumei”, fala, mirando a arrebentação.
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