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Geraldo, 102 anos, o último cearense herói de guerra
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

Geraldo, 102 anos, o último cearense herói de guerra

O pracinha "Fortaleza" nem queria ir para o front, mas foi um dos combatentes da 2ª Guerra Mundial. Esteve em solo italiano na reta final do conflito. Viu Mussolini morto e espichado "feito um boi". Voltou e segue contando suas histórias
GERALDO Oliveira, cearense que lutou na Segunda Guerra Mundial (Foto: BEATRIZ BOBLITZ)
Foto: BEATRIZ BOBLITZ GERALDO Oliveira, cearense que lutou na Segunda Guerra Mundial

Geraldo Rodrigues de Oliveira tinha seus "17 anos e oito meses". Sua memória privilegiada guarda detalhes como esse. Ele ia com o primo para o colégio quando ouviu uma chamada no rádio. O som era da PRE-9, atual Ceará Rádio Clube. Na mensagem, o locutor convidava jovens para o alistamento militar. O estudante esguio, boa estatura, apresentou-se e foi aceito de imediato.

Era 1939, o mundo de novo em guerra. O Brasil de Getúlio Vargas, depois de oferecer pontos de base ao longo de sua costa, se uniu aos Aliados, lado formado por Reino Unido, EUA, França e União Soviética. Todos contra o Eixo, que juntava a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini e o Japão do imperador Hirohito. O rapaz nem se alistara pensando em ir para o front, mas esteve lá.

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Em 1944, já com 22 anos, lotado no 23º Batalhão de Caçadores, o praça "Fortaleza", como Geraldo ficaria conhecido na tropa (embora nascido em Boa Viagem), embarcou entre 377 militares cearenses do porto do Mucuripe para o Rio de Janeiro. De lá, após um período de preparação, zarparam no navio General Mann para a Itália. Era um dos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial. A ida já foi tensa, havia o receio de ataque de submarinos alemães no Estreito de Gibraltar, próximo ao mar Mediterrâneo. Viajaram escoltados pelos americanos.

Geraldo lembra de, quando tinha pouco mais de 17 anos, ter ouvido uma chamada de rádio convocando jovens para o alistamento militar
Foto: BEATRIZ BOBLITZ
Geraldo lembra de, quando tinha pouco mais de 17 anos, ter ouvido uma chamada de rádio convocando jovens para o alistamento militar

Aquele rapaz hoje tem 102 anos. Ele viu, viveu, venceu e voltou. Geraldo é agora o último herói de guerra cearense vivo. Mesmo que ter ido para o conflito nem fosse sua intenção. “Meu pai concordou, minha mãe não concordou. Eu não queria ir, mas tive que seguir a determinação do Exército”, conta o longevo ex-pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB). 

Segundo o major Gustavo Augusto de Araújo Chaves Pereira, historiador do Exército e assessor cultural da 10ª Região Militar, os dois outros conterrâneos da FEB que restavam, Luís Leão e Francisco Bezerra, morreram em 2023, ambos com 100 anos. Em 2019, havia cerca de 20 deles no Ceará. “Geraldo certamente está entre os mais idosos do Brasil. O mais velho atualmente estaria com 105 anos”.

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Em casa, "Fortaleza" gosta de ser chamado de "Tenente" — reformou-se com a patente. A família cuida para que ele esteja bem e participe, em 2025, das homenagens pelos 80 anos do fim do conflito. Geraldo está lúcido, altivo. A vista nem precisa de óculos, a audição falha. Hoje está menos lépido que até o começo da pandemia de Covid-19 (que atravessou sem nem ter sido acometido pela doença), quando inclusive subia em garupa de mototáxi para ir à Praça do Ferreira, segundo sua cuidadora Neusa.

Até antes do início da pandemia, em 2020, segundo seus familiares, Geraldo Oliveira, hoje com 102 anos, saía de casa, inclusive de moto, para andanças e conversas com os amigos pelo Centro de Fortaleza
Foto: BEATRIZ BOBLITZ
Até antes do início da pandemia, em 2020, segundo seus familiares, Geraldo Oliveira, hoje com 102 anos, saía de casa, inclusive de moto, para andanças e conversas com os amigos pelo Centro de Fortaleza

A memória é invejável, cheia de gavetas das suas histórias. São muitas. É detalhista ao recuperar momentos como pracinha na Itália. As imprecisões das lembranças — algumas corrigidas ou ajustadas com o historiador do Exército — não comprometem o contexto. Em maio deste ano, deu seu relato para um documentarista holandês, para um filme sobre os heróis de guerra brasileiros.

É um testemunho valioso, mas quando é desafiado para uma partida no jogo de damas, então essa passa a ser sua prioridade. É estrategista e competitivo no tabuleiro.

Geraldo foi um dos 25.332 militares brasileiros no combate. Era do chamado 5º Escalão. O nome oficial era Companhia de Recompletamento da Força Expedicionária Brasileira (FEB), também chamada Depósito de Pessoal ou Reserva Tática. Ele esteve em solo italiano já na reta final do conflito, entre fevereiro e maio de 1945.

A rendição alemã foi anunciada na França à meia-noite de 8 de maio. No Ceará ainda era dia 7, deu tempo ser manchete do O POVO: "Paz, afinal! Oficialmente anunciado que a luta cessou na Europa". “Eu estava na companhia quando anunciaram que a guerra tinha terminado. Todo mundo sacudiu os chapéus pra cima, de alegria. Eu também fiz o mesmo”.

Capa do O POVO, de 7 de maio de 1945, com o anúncio do fim da guerra
Foto: reprodução
Capa do O POVO, de 7 de maio de 1945, com o anúncio do fim da guerra

Empunhando baioneta, o frio severo da época, Geraldo enfrentou os nazistas diretamente. Curiosamente, por três vezes, chegou a ser chamado para o combate, mas foi retirado de última hora. Sua participação mais efetiva foi na Batalha de Montese, uma das vitórias da FEB mais exaltadas. Junto com a Batalha de Monte Castelo, foram as que mais tiveram a presença dos cearenses. Dois bairros de Fortaleza homenageiam as localidades.

Montese tinha pouco mais de 3 mil habitantes, na província de Modena, região da Emilia Romagna, centro da Bota. Na comuna de Monte Castelo, ainda menor, eram apenas 350 moradores. Foram zonas conquistadas que permitiram o avanço das tropas aliadas na Europa Central, contra a linha de defesa do Eixo.

"Montese foi uma das (batalhas) mais sangrentas", descreve o major Gustavo Augusto, um dos autores do livro "Reminiscências da História do Ceará na Segunda Guerra Mundial". Segundo ele, foram 430 mortes em Montese, das 476 baixas brasileiras na campanha da Itália (467 da FEB e nove pilotos da Força Aérea-FAB). Aconteceu em abril de 1945. Menos de um mês adiante, o conflito findaria. Os nazistas já arquejavam.

Geraldo conta que chegou a ver o corpo do ditador Benito Mussolini, depois de fuzilado por antifascistas, exposto em praça pública no centro de Milão, ao lado de sua amante, Claretta Petacci. "Estava lá pendurado feito um boi", descreve de suas lembranças mais nítidas. “Cheguei a fazer foto”. Carolina Bertrand, uma das filhas de Geraldo, recorda de ter visto a imagem feita pelo pai. “Não sei mais onde está”.

Medalhas de Geraldo Oliveira, o último herói de guerra cearense
Foto: Cláudio Ribeiro
Medalhas de Geraldo Oliveira, o último herói de guerra cearense

Ele chegou a ser ferido por estilhaços de uma bomba, mas durante treinamento para os brasileiros na região do acampamento. Tem cicatriz no alto da cabeça, lembra de ferimentos na barriga. Recorda de posições numa casamata, “ficava num buraco para evitar tiro”. Lembra do cemitério de Pistoia, onde os brasileiros foram sepultados.

Geraldo menciona alemães percorrendo a região e cita dois cearenses ilustres em postos de comando da tropa. Humberto de Alencar Castello Branco, que viria a ser marechal e primeiro presidente da ditadura militar de 1964, e Tácito Teóphilo Gaspar de Oliveira, que chegou a general, ministro de Estado e outros cargos militares de destaque nacional.

Só Geraldo foi militar na família. Seu pai, Miguel, chegou a ser soldado… da borracha, em extrações de seringais no Acre. A mãe, Carolina, morreu jovem, de infarto. Antes do serviço militar, havia sido gazeteiro do O POVO ("os presidentes eram Demócrito Rocha, Paulo Sarasate e Creusa Rocha"). De volta à vida civil, foi jóquei, até delegado nomeado no Interior, carteiro. Aposentou-se nos quadros dos Correios.

O herói nunca quis ir para a guerra — não assiste filmes ou noticiário com essa temática. Geraldo teve medo de não voltar. “Guerra é cruel. Tanto para quem vai como para quem veio. É cruel em todos os sentidos. Tanto na vitória quanto na derrota”.

O tabuleiro de damas é a principal diversão de Geraldo Rodrigues Oliveira. Ele desafia a todos, de familiar a visita, e raramente perde uma partida
Foto: Cláudio Ribeiro
O tabuleiro de damas é a principal diversão de Geraldo Rodrigues Oliveira. Ele desafia a todos, de familiar a visita, e raramente perde uma partida

(PS: Ao final da conversa, jogamos duas partidas de damas. Perdi uma, empatamos a outra. Jogo bem, segundo ele, mas acho que eu também perderia a terceira.)

LEIA TAMBÉM| Especial Memórias da Guerra, publicado pelo O POVO em setembro de 2009 

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