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Do Sertão para o front italiano: quem foram os cearenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial
Reportagem Especial

Do Sertão para o front italiano: quem foram os cearenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial

Mesmo pobre e isolado à época, o pacato Ceará mobilizou 377 combatentes para a Força Expedicionária Brasileira; conheça relatos dos pracinhas na guerra mais sangrenta de todos os tempos

Do Sertão para o front italiano: quem foram os cearenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial

Mesmo pobre e isolado à época, o pacato Ceará mobilizou 377 combatentes para a Força Expedicionária Brasileira; conheça relatos dos pracinhas na guerra mais sangrenta de todos os tempos
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"Nesse tempo, não tinha televisão. Era um radiozinho, isso para quem podia. E quem não podia ouvia no rádio dos outros", relata o pracinha Cícero Davi de Ouro Preto*, lembrando a chegada das primeiras notícias da guerra na Europa. "Fortaleza era só das caixas d'água para lá. Para cá, no Montese, era tudo mato (...) a gente não sabia de nada, apenas que os alemães tinham declarado guerra". Mesmo assim, veio a decisão de ajudar no combate ao Eixo: “Disseram: 'Tu vai?', 'eu vou'. Eita, que agora o pau vai pegar! Seja o que Deus quiser".

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Neto de ex-escravos e natural de Iguatu, a 395 quilômetros de Fortaleza, Cícero foi um dos 377 cearenses incorporados à Força Expedicionária Brasileira (FEB) e enviados em 1944 ao front europeu. “Foram mais de 500 recrutados em todo o Ceará, mas muitos acabaram barrados no exame médico”, explica o major e historiador Gustavo Augusto de Araújo Chaves. “Eram jovens agricultores, quase todos analfabetos, alguns com problemas de saúde ou dentes muito cariados, mas com vontade de ajudar na luta. Quando eram dispensados, choravam”, disse ao O POVO.

O próprio Cícero brincava: “Tinha 20 médicos, dez americanos e dez brasileiros. Só faltou virar a gente pelo avesso. Oxente, o cara para morrer precisa dessa vigilância danada? Diabo é isso”. De olho em mobilizar voluntários, o Exército abriu diversos pontos de recrutamento em todo o Estado. No Interior, o primeiro local a alistar jovens foi Sobral, no antigo Tiro de Guerra. “Foi uma campanha muito aceita entre a população”, diz major Gustavo. Os aspirantes eram enviados aos quartéis do 23º BC (no Benfica) e do antigo 29º BC (hoje extinto).

“Perguntavam se eu não tinha medo de morrer, de cair bomba em mim. Eu dizia ‘eu não, qualquer coisa se jogarem uma eu pulo pra frente’”, brinca o pracinha José Maria Veras, hoje com 94 anos. Ele conta que, após o alistamento, os recrutas eram lotados em um dos quartéis de Fortaleza. Em junho de 1944, partiu para o Rio de Janeiro o primeiro de três grupos cearenses. A viagem foi feita no navio Itapé, com parada em Recife. Chegando no Rio, os praças recebiam treinamento de armas e embarcavam novamente, desta vez rumo à Itália.

“Embarquei no navio americano General Mann. Durante a viagem, que durou 14 dias, a gente recebia instruções de abandono do navio caso ele fosse torpedeado. Não nutria nenhuma esperança de voltar vivo”, relata outro pracinha, Luiz Leão de Souza, que se alistou de olho no certificado para assumir uma vaga na Rede Viação Cearense (RVC). Segundo o relato, era constante o medo de que os navios fossem interceptados pelos nazistas. Ao todo, seguiram para o front europeu 25,7 mil brasileiros. Dos 377 cearenses, seis morreriam em combate.

O primeiro grupo da FEB chegou ao porto de Nápoles em 16 de julho de 1944. “A população nos recebeu com agressividade, devido a cor de nossa farda ser semelhante a dos alemães”, diz o tauaense Antônio Alexandrino Correia, que estava no navio. “Meu batismo de fogo foi logo ao chegar; quando estava trabalhando próximo a uma ponte, juntamente com outros combatentes, recebemos um violento ataque de fogo alemão. Todos os companheiros dispersaram-se em debandada, deixando-me só e muito emocionado”, diz.

Havia outro problema: como o plano original dos Aliados era enviar os brasileiros para o front da África, a farda da FEB era insuficiente para o frio italiano. Os brasileiros desenvolveram então várias gambiarras, como forrar os sapatos com folhas de jornal e palha. A solução veio só depois, quando os americanos forneceram material adequado à tropa. Passado o mal-entendido da farda, convivência entre brasileiros e italianos foi das melhores: “Os brasileiros eram muito bons com os italianos, davam até chocolates e caramelos. Ingleses e americanos não”, relata o italiano Rino Morelli, criança na época da chegada brasileira.

A FEB ficaria em combate na Itália até 7 de maio de 1945, passando 239 desses dias em situação de combate ininterrupto. A força brasileira lutou contra nove divisões alemãs e três italianas, sofrendo 454 baixas e obtendo pelo menos 17 grandes vitórias contra forças do Eixo. Entre as principais batalhas, se destacam as de Monte Castelo – a mais longa, durando mais de três meses entre novembro de 1944 e fevereiro de 1945 – e a do Montese – a mais sangrenta, com 430 baixas, entre mortos, feridos, aprisionados e desaparecidos.

Quem foram os cearenses que morreram na Segunda Guerra Mundial:

 

“Quando anunciaram que a Alemanha havia se rendido, em maio, foi uma comemoração grande, como quando o seu time faz um gol. Todo mundo gritava, se abraçava”, relata José Maria Veras. Vitoriosos, os brasileiros ainda passaram algum tempo na Itália. Em agosto, desfilaram na Avenida da Liberdade, em Lisboa, e embarcaram de volta para o Rio de Janeiro. Os primeiros barcos de pracinhas cearenses chegaram ao Porto do Mucuripe em 17 de agosto de 1945, recebidos com festa e saindo em marcha de comemoração pela cidade.

Quem foram todos os cearenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial:

 

“Quando a guerra terminou, eu estava em Pistoia, e vi muitas latas de cerveja sendo distribuídas pelos americanos, para comemorar aquela vitória da liberdade”, lembra Luiz Leão de Souza. De volta à vida normal, o pracinha passou para a Polícia Militar, onde diz ter tido a oportunidade de viver a “III Guerra Mundial”, duelando com cangaceiros e pistoleiros no Interior do Ceará. “Senti aí a morte bem próxima. Muito mais arriscado que a guerra”, diz.

Atualmente, cerca de 20 veteranos cearenses da FEB ainda estão vivos, a maioria residindo no Ceará. O presidente da Associação Nacional dos Veteranos da FEB no Ceará, coronel Francisco de Assis e Souza, destaca a necessidade de manter viva a memória dos pracinhas brasileiros da Segunda Guerra. "É muito importante que o Brasil conheça os seus heróis, que o jovem conheça essa história", diz. 

* O depoimento de Cícero Davi de Ouro Preto ao jornalista Tiago Coutinho foi gravado pelo O POVO em 13 de agosto de 2009, na ocasião dos 70 anos do início da Segunda Guerra. Cícero vive até hoje no bairro Montese. Em fevereiro deste ano, a reportagem do O POVO reencontrou o pracinha durante evento de comemoração dos 74 anos da tomada de Monte Castelo

Colaborou David Moura, do O POVO Dados

Pesquisa histórica: Fred Souza, do O POVO Dados

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