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Crianças cruzam as linhas de facções rivais para frequentar as aulas da "tia" Marina
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

Crianças cruzam as linhas de facções rivais para frequentar as aulas da "tia" Marina

Sempre com a farda da PMCE, Marina Rodrigues oferece reforço escolar em projeto voluntário para crianças do Bom Jardim, em área de grande vulnerabilidade social. Ela é pedagoga de formação e soldado da corporação há dois anos e dois meses
Tipo Notícia
Soldado PM Marina Rodrigues mantém projeto voluntário de reforço escolar para crianças no conjunto habitacional Heloneida Studart, no Grande Bom Jardim. O lugar é território de violência, com a disputa de facções rivais (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Soldado PM Marina Rodrigues mantém projeto voluntário de reforço escolar para crianças no conjunto habitacional Heloneida Studart, no Grande Bom Jardim. O lugar é território de violência, com a disputa de facções rivais

Sem fazer um contato visual, como é característico de quem tem o Transtorno do Espectro Autista (TEA), Pedro Lucas, de 12 anos, apenas estende os braços e nos recepciona. Num abraço desses de melhorar os dias. Parecia que já era amigo de longa data. Não quis só o soquinho de mão. As palavras são poucas, o carisma é pelo carinho. Logo se destaca entre os demais na turma da “tia” Marina. Por confiança, se ancora em abraços seguidos com a professora.

Os demais também. “Eles gostam muito da tia Marina. Ela ensina, tira as dúvidas, faz as tarefas, usa o tempo dela. Interage, brinca com as crianças, tem muita paciência”, diz Adriana Maria Torres, 46, jovem avó de Ana Alanis e mãe de coração de Derick, ambos com sete anos. Até quando a “tia” é mais firme eles não reclamam. Marina Rodrigues é soldado da Polícia Militar do Ceará (PMCE). De arma no coldre, dá aula com a farda da corporação.

Ali é o terraço do acesso principal do Residencial Heloneida Studart, no Bom Jardim. Marina concebeu e conduz, às segundas, quartas e sextas, manhã e tarde, um projeto voluntário de reforço escolar chamado “Educação e Paz”. As cadeiras e mesas, assim como os livros e os brinquedos foram doados ou comprados por ela. O slogan do projeto é simples, “Construindo e Multiplicando Sonhos”, mas visto pela comunidade como oportunidade rara.

O residencial é habitado por famílias de baixa renda, várias ex-ocupantes de áreas de risco. O teto assegurado não desfez a vulnerabilidade social. Entre vários recortes da rotina difícil, o lugar é cravado no meio de uma disputa territorial de facções rivais. Marina iniciou o projeto em junho de 2023 e foi acolhido pelo comando da 2ª Companhia do 17º Batalhão da PMCE, que serve ao bairro. É autorizada a dar aulas em horários de serviço. Nos outros dias, volta para as ações ostensivas.

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O Heloneida Studart tem 288 apartamentos. É obra da administração municipal. As chaves foram entregues aos moradores em abril de 2018. Os 16 blocos de 18 apartamentos foram construídos colados a outro residencial. No mesmo perfil, o Ana Facó tem número idêntico de unidades habitacionais, foi inaugurado exatamente na mesma época. Foi erguido pelo governo estadual. (Heloneida e Ana Facó foram duas escritoras cearenses ativistas da educação.)

Mais de 2 mil pessoas moram nos dois conjuntos. A rua de frente chama Jardim do Éden, mas, com as facções controlando o ir e vir está longe de encarnar um paraíso. E isso fundamenta a presença e o propósito da “tia” Marina. A delimitação não é pelo mapa oficial. A dois quarteirões, a rua Urucutuba é a divisa para o trecho dominado pela facção CV, para quem chega aos conjuntos. Quem desce para o lado oposto entra na faixa da GDE.

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Só que os meninos e meninas e as mães que buscam o projeto têm cruzado essas linhas proibidas. Há um aval silencioso dos faccionados. O medo vem sendo aliviado.

Os dois residenciais surgiram no tempo em que os dois lados gestores locais ainda não se odiavam. Nesses seis anos, nem o Governo do Ceará nem a Prefeitura de Fortaleza, que hoje se digladiam e renegam as coligações do passado, nenhum cuidou bem dos que moram nos conjuntos e no entorno. Além da insegurança, a região tem problemas como a distância dos postos de saúde e do atendimento psicossocial, a falta de creches e o acesso tranquilo às escolas mais próximas.

“Quando entregaram os apartamentos pra nós, só jogaram nós aqui. Prefeitura e Governo não deram respaldo. A gente via as crianças muito soltas. Elas brincavam até em cima da lixeira”, relembra Marli Rodrigues, líder comunitária, incentivadora das aulas de Marina. “(O projeto) foi muito aceito, até por conta da divisão, lado A, lado B. As crianças vêm. Até a própria facção aceitou de boa”. Observam sem reagir, segundo ela.

A proposta tem feito mais diferença do que uma viatura no local ou uma eventual operação policial. Ainda não há paz decretada, mas os efeitos são visíveis. Descrevo do que ouvi e vi. A bolha tem sido furada. O vento bom tem se espalhado pela vizinhança.

O projeto atende crianças dos residenciais Heloneida Studart e Ana Facó e moradoras de ruas do entorno, separadas a partir do território das facções rivais
Foto: Samuel Setubal
O projeto atende crianças dos residenciais Heloneida Studart e Ana Facó e moradoras de ruas do entorno, separadas a partir do território das facções rivais

Marina é qualificada. Pedagoga de formação, pós-graduada em psicopedagogia e em educação especial, também estudante de Direito. Tem 31 anos. É soldado da PMCE há dois anos e dois meses. Depois de seis anos como professora em sua cidade, Quixeramobim, quis seguir sua outra vocação - que diz ter alimentado desde pequena. “Sempre quis ser PM. Desde pequena. Aqui, conversamos com a liderança comunitária e começamos. Meu objetivo está aqui, em meio à segurança pública, em meio à educação. Entrando nas comunidades e servindo àqueles que realmente necessitam”.

A frequência é muito boa, 30 a 40 alunos nos dois turnos. Quando visitamos, na semana passada, as cinco mesas estavam cheias. E nem todos haviam comparecido. Participam crianças de 8 anos, como Miguel, aos 13, como Gabriel, que estava em sua primeira aula naquele dia. Mera coincidência ambos terem nome de arcanjos.

São realizadas atividades de reforço escolar, leitura e escrita e o uso do lúdico. Principalmente, segundo Marina, quando nota dificuldades específicas de aprendizado. Estímulo ao raciocínio, concentração ou coordenação motora fina. Quatro das crianças têm diagnóstico de autismo ou de Transtorno de Déficit de Atenção ou Hiperatividade (TDAH). Algumas, em idade ou séries avançadas, leem pouco ou mal, escrevem mal ou nada, “chegam até sem saber a idade”.

“Atualmente, as facções miram muito os mais novos. Elas pegam a criança para aliciar em qualquer idade. O trabalho que a gente faz é preventivo. As crianças precisam ter alguém para se inspirar. Se elas não nos verem como exemplo, vão seguir o mau exemplo”, ensina Marina.

(Uma das lixeiras do residencial, hoje desativada, recebeu pintura e a marca do projeto. Será readequada para, brevemente, abrigar as aulas e as crianças da tia Marina.)

Foto do Cláudio Ribeiro

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