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Dores, violência, a miséria e um amor protetor
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

Dores, violência, a miséria e um amor protetor

Eduilton cuida de Joelma, que cuida de Eduilton. Nem sempre estão debaixo de um teto, já passaram pelo pior, vida de miséria. Estão entre os 10 mil que povoam as ruas de Fortaleza. Buscam curas de suas doenças graves, se anestesiam no amor companheiro
EDUILTON e Joelma, na falta de saúde e um teto digno, se abrigam no amor um do outro (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA EDUILTON e Joelma, na falta de saúde e um teto digno, se abrigam no amor um do outro

Quero aprender mais sobre o amor. Preciso, recomendo. Para não ser surpreendido com uma pancada tão forte que são Joelma e Eduilton. A vida lhes foi maldita. Está sendo. E eles nadam um rio caudaloso em braçadas frágeis, mas alcançam a outra margem. Vivem na miséria. Um é a proteção do outro. Também se ancoram na fé.

Como no clichê, atravessam um dia de cada vez - e suas noites, com ou sem chuva, nem sempre sob um teto. Mais carência, nunca fartura. Sofreram maldades, tentam escapar das atuais. O companheirismo em tudo é o suporte, mas há dores agudas. É uma história sem levezas. Mas é principalmente sobre amor.

Os dois são da classe social abaixo da linha do razoável. Desde jovens, crianças. Estão no cadastro oficial dos quase 10 mil que formam a população das ruas de Fortaleza. O triplo de gente que havia em 2021. Nossos olhos já fizeram essa contagem em calçadas e praças.

Ela tinha “uns sete pra oito anos” quando saiu de casa a primeira vez. Um conhecido tentou o abuso, ela fugiu. Talvez sua primeira tragédia e violência, de tantas sofridas dentro e fora do lar. Passou mais de um ano “desaparecida”. Fugiria várias vezes pelo mesmo motivo. Não recebia o apoio, pensavam que ela mentia.

Ele adolescente, quando perdeu a mãe, caiu no desespero e num conflito familiar. “Teve briga muito séria, de faca”. Quase aconteceu o pior, decidiu também sair, fugir. “Iniciados” nas ruas em tempos diferentes, mas se conheciam da Messejana. Se viam nas ruas do Centro, se reencontraram.

Seguidamente, Eduilton e Joelma consideram que estão nas ruas desde 1999, sem intervalos de voltas. Fazem uma conta desse tempo enquanto lembram das dificuldades. Muitas tristezas, dores agudas, ausências, engoliram a fome, consumiram o ilícito para driblar essa fome. Fizeram silêncio ou fingiram costume quando mereciam apenas chorar.

Já estiveram pior e melhor do que hoje, já estiveram juntos e separados. E nunca nem foram um casal, mesmo que tenham sido pais de uma filha - quando ainda tinham 14 ela e 13 ele, hoje têm 48 e 47. Um namoro sem culpa nem orientação virou gravidez inesperada.

Mais tristeza. Marília, a única filha entre eles, morreu assassinada em 2019. Tinha 28, foi criada por avó e tia do lado materno. Estava em sua banca de espetinhos, no Conjunto Palmeiras, alguém chegou atirando contra outro alguém e ela que morreu.

Depois da filha, adolesceram, viraram adultos, o tempo espanou a proximidade. Tiveram outros relacionamentos. Ele foi pai de mais três filhos. E ela de duas filhas e um filho também. Poderia haver um quarto filho dela, não fosse um episódio brutal. Estaria no sexto mês de gestação quando sofreu um aborto, forçado por um caso de violência doméstica. O menino já tinha até nome, Ediglê. “Meu menino estava todo formado”, relembra.

Após depressões, amarguras e desentendimentos, a fuga para as ruas ou tetos improvisados reaconteceu para ambos, em tempos distintos e até o reencontro. Comiam do que davam, vigiavam carros, dormiam em barracos. Joelma contraiu leptospirose na Praça do Ferreira. Eduilton tornou-se obeso e adoeceu. Sofreu três infartos. Dali passaram a se cuidar como melhores amigos, o maior amor de cada um.

Estão juntos de novo, até sob um teto, mas ainda debaixo de necessidades, escorados em incertezas que cruzam suas horas de cada dia. Ele tem um stent no coração, a pressão estoura a qualquer esforço mínimo. Ela cuidava dele, acompanhante no Hospital do Coração, em Messejana, quando uma enfermeira lhe recomendou um exame. Estava muito pálida.

A anemia era o sintoma de um câncer sério, um mieloma múltiplo. Já são cinco anos. Joelma depende de um transplante de medula óssea. Toma morfina diariamente para se aguentar

Ambos estão bem fragilizados, não podem trabalhar. Ele cuida dela e ela cuida dele. São faltas, perdas, infelicidades, mazelas. E um bem-querer que anestesia. O lugar que moram é pago com dinheiro de aluguel social e complementado do que recebem com benefícios dados ao povo em situação de rua. São vizinhos de um prostíbulo, parede com parede.

Os dois têm medo, Por isso não quiseram mostrar o rosto, autorizaram o nome. Foram assaltados dentro de casa, a mão armada. Roubaram poucas coisas, mas todas importantes. Inclusive os documentos dele. O crime no Centro é onipresente, já loteia áreas do quadrilátero.

Eduilton acompanha Joelma toda quarta-feira na sessão de quimioterapia no Hospital Geral de Fortaleza, reiniciada em abril de 2024 - chegou a passar oito meses sem receber a medicação. Qualquer esforço dela é um risco. A doença derruba sua imunidade.

É um amor escrito em linhas tortas. “No fim das contas, nossa família sou eu e ela. Quero a curazinha dela. Ela é muito forte, mas está bem fraca”, diz Eduilton. E o quanto gosta dela? “O quanto mais que o senhor imaginar”, me diz, no sorriso mais bem dado da conversa toda. Ela olha para ele profundamente. “Também quero a saúde dele. Sinto que ele sofre de não poder fazer nada”. E se abraçam, apertam-se no corpo e nas mãos. Joelma não estudou. "Quando seu Cláudio escrever, vou ler nossa história pra você", prometeu Eduilton. 

É difícil escrever sobre amor. Mas vale apurar.

Foto do Cláudio Ribeiro

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