
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Essa semana comecei a desencaixotar minha biblioteca na casa do alto da Peroba, em Icapuí. É uma tarefa que se repetiu muitas vezes na minha vida. Meu pai me ensinou a gostar de mudanças.
- Meu filho, mudar faz bem. Mudar desorganiza nossa cabeça e faz a gente começar tudo de novo, dizia o Professor Edgar. E lá íamos nós, éramos muitos, oito irmãos no princípio, mais a mamãe e tia Socorro, com uma mala na cabeça. Cresci gostando de mudanças.
Mas as lembranças que me vêm nessa lenta de desencaixotar e limpar meus livros, hoje, me perturbam.
Em 1931, Walter Benjamin escreveu um texto célebre com esse título. Ele dizia:
"Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revistá-los. Nada disso vocês têm que temer. Ao contrário, devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia após uma escuridão de dois anos".
Meus livros estavam há três anos numa lan house transformada em depósito que aluguei na Peroba. Pensei em doar minha biblioteca a um das instituições que criei durante minhas lutas, um centro cultural, uma das escolas de arte ou um dos museus.
Enquanto avaliava a adequação da melhor doação dos quatro mil livros que me restaram, depois de tantas mudanças, passei a ter pesadelos com o futuro deles.
Pensei em mãos cruéis arrancando páginas grifadas dos meus livros com milhões de anotações. Olhos irônicos observando meus comentários.
Bocas sussurrando sobre meus bilhetes, passagens de metrô, boletos de dívidas, contas de bares.
Não, minha biblioteca vai continuar comigo até que nós dois nos transformemos em pó.
O argentino Alberto Manguel escreveu também um livro com o título do ensaio de Benjamin, chorando e refletindo enquanto encaixotava sua magnífica biblioteca de 35 mil livros (acho que ele exagerou no número de livros) instalada na França, em um antigo presbitério de pedra, situado no vale do Loire,
num povoado de menos de dez casas.
Segundo Manguel, os livros iriam para seu apartamento em New York. Ele não explicou bem as causas da mudança, atribuiu a uma "sórdida burocracia". Talvez a mesma que levou meus livros da Praia de Iracema a uma casinha branca na Peroba.
Manguel, lá pelas tantas, arrola suas preciosidades bibliográficas. Um manuscrito de um scriptorium alemão do século XIII, um manual de inquisidores do século XVI, e por aí vai.
Minhas modéstia relíquias são a primeira edição de "Tristes Trópicos" na França, a primeira e única edição de "Classe média", o primeiro romance de Jáder Carvalho, e outras cositas mais palatáveis.
Lembrei-me de todas as vezes que encaixotei e desencaixotei minha biblioteca. Todas as mudanças de cidades e moradias. As separações. O ritual de "toma o teu-esse é meu" dos livros da biblioteca do casal desfeito é sempre um sofrimento indelével e foi imortalizado na música "Trocando em miúdos" por
Chico Buarque:
"Devolva o Neruda que você me tomou / E nunca leu/ Eu bato o portão sem fazer alarde/ Eu levo a carteira de identidade / Uma saideira, muita saudade / E a leve impressão de que já vou tarde
A gente perde um pedaço da biblioteca e do coração em cada separação/ E não adianta chorar".
As bibliotecas públicas de nossas vidas também são motivo de abandono e algum sofrimento. Ao contrário de Walter Benjamin, que escreveu a maior parte de sua obra na Biblioteca Nacional da França, não sou muito de biblioteca pública. Detesto a lentidão dos processos, a consulta que leva uma manhã ou uma tarde toda para chegar nas nossas mãos.
Só me lembro com carinho da biblioteca da École de Hautes Études de Sciences Sociales de Paris. Ali estudei e li como nunca. Tenho saudade até mesmo da voz do Professor Diatahy Bezerra de Menezes, saindo do fundo da sala e dando carão, em francês perfeito, em nós brazucas que fazíamos sempre um barulho ou outro indevido.
Manguel conta que, no dia em que viu sua biblioteca na França, pela última vez, ficou desesperadamente infeliz, e ondas de lembranças de frases sobre vingança, ódio e angústia vieram martelar sua cabeça "como se a biblioteca estivesse abrindo seus livros para mim num derradeiro gesto de amizade".
"Não, Alberto, não tenho tempo para ódio ou vingança todas as vezes que tentam destruir minha biblioteca ou meus sonhos. Você mesmo se lembrou da figura de Alonso Quijano, o velho que se torna Dom Quixote através das suas leituras. O pároco da aldeia e o barbeiro, a fim de curá-lo do que acreditam ser sua loucura, jogam na fogueira a maior parte dos livros dele e ocultam os que restaram atrás de uma muralha de tijolo para dar a impressão de que a biblioteca nunca existiu".
Quando, após dois dias de convalescença, ele sai da cama e não encontra sua biblioteca, permanece em casa sem dizer uma palavra durante quinze dias. Depois, Alonso Quijano sai de casa, conversa com o pároco e o barbeiro sobre seus livros e resolve sair em busca de novas aventuras. Então, ele já é Dom
Quixote. Seus livros estão inteiros na sua cabeça.
Acho que é isso. A gente nunca perde totalmente os livros que teve um dia.
ACEPIPES. ÀS VEZES INDIGESTOS.
A NOVA/VELHA LIVRARIA
LEITURA NO RIOMAR
Ficou melhor que a encomenda a redução que a livraria leitura fez no RioMar. Ficou mais compactada. Melhor de se transitar entre seções. O café no meio ficou perfeito. Pena que tenha um wi-fi péssimo. E o café tem outro tão ruim quanto o da livraria. É um detalhe irritante. Custa investir uma merreca de um wi-fi de qualidade?
FOLHA EM PARAFUSO
O Haddad vai enlouquecer os colunistas reacionários da Folha de São Paulo. Quanto mais a economia melhora, mais eles entram em parafuso. E cada dia tem uma notícia melhor do que a outra.
Hoje (escrevi a coluna na quarta feira) foi o Fitch que melhorou a nota de crédito do Brasil e comentou o desempenho melhor do que o esperado. Eles sempre esperam o pior. E tem vindo cada vez melhor.
LE CUISINIER
DA VARJOTA.
Era o que faltava na Varjota, o melhor francês da cidade. O Le Cuisinier vai inaugurar neste fim de semana na Ana Bilhar. Com sua ótima padaria e o restaurante
au grand complet. Bela notícia para o nosso baixo Leblon tupiniquim.
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