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O mistério da maldade humana
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O mistério da maldade humana

Em termos de comportamento, a natureza humana exibe, com maior número de variáveis e intensidades de matizes, o que mais ambiguamente nos caracteriza quanto à falibilidade e imprevisibilidade
Tipo Crônica
As contradições do comportamento humano (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos As contradições do comportamento humano

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Dizem que o direito e a medicina se aproximam muito.

Apesar de obviamente lidarem com problemas diversos, afirma-se que são essas duas áreas as que mais penetram na privacidade das pessoas, uma em seu aspecto físico e emocional e a outra em seu componente comportamental.

Ambas se aprofundam nas nossas intimidades e confidências, examinam nossas aparências e o reservado, mantendo contato com nossas vergonhas e sigilos. Seus profissionais têm a verdade como lema e possuem a responsabilidade de revelar para nós mesmos o que escondemos, exibindo, sem pudor e para o nosso próprio bem, o até então encoberto e o clandestino.

Creio que todo médico se constrange ao ter que dar um diagnóstico difícil para seu paciente e família, ao tempo em que os fortalece e passa confiança para o início do tratamento. Acontece parecido com o profissional do Direito, como o advogado que examina as esperanças do seu cliente e fornece-lhe as perspectivas jurídicas com sinceridade e empatia. Em ambos os casos, colocam-se ao lado daqueles que os procuraram para alívio de uma dor ou angústia, seja ela física, emocional, patrimonial ou familiar.

Trabalham, o direito e a medicina, com o mais precioso dos ingredientes, que é a natureza humana. Na frente do médico, ela se apresenta literalmente corporificada e densa. Diante do profissional do Direito, já se mostra mais tênue e diáfana. Na medicina, pode-se dizer, existe uma certa previsibilidade das ocorrências, com certo grau de proximidade entre causa e efeito, apesar das incertezas e intensidades também serem constantes e a clínica muitas vezes superar os compêndios. No direito, creio, a imprecisão é maior, apesar de tantos códigos e leis nos dizendo o que devemos e não devemos fazer.

É que, em termos de comportamento, a natureza humana exibe, com maior número de variáveis e intensidades de matizes, o que mais ambiguamente nos caracteriza quanto à falibilidade e imprevisibilidade, além das nossas fragilidades e contradições.

"Quem sabe, algum dia, medicina e direito possam trabalhar mais de perto e elucidar a complexidade da natureza humana e o teor dos comportamentos inconsistentes"

Nesse ano de 2023, fiz 36 anos de formado em Direito. A maior parte deles como juiz federal, de uma vara criminal. Posso dizer que já julguei centenas de pessoas, a maioria por acusações ligados a dinheiro, seja em desvio de verbas públicas, sonegação de tributos, corrupção, estelionato, contrabando, tráfico internacional e falsificações. Muitas foram absolvidas mas, na maior parte das condenações, não consegui vislumbrar exatamente a motivação. Não eram pessoas impelidas por necessidades ou carências, nem com problemas de saúde na família ou desesperadas por dívidas, mas transpareceram terem agido simplesmente por desejos incontrolados ou ambições sem temperança.

É surpreendente como pessoas sem antecedentes, com carreiras consolidadas, bons familiares, amigos dedicados e leais colegas de trabalho muitas vezes se deixam levar por tentações meramente mundanas e passageiras, ligadas a prazeres efêmeros e frívolos, colocando não apenas sua liberdade em jogo, mas também sua honra, família e paz de espírito.

Espanta, também, constatar a vilania de alguns que fazem maldades simplesmente por fazerem, sem sequer algum ganho pessoal imediato, numa indiferença doentia com o destino alheio, além da aparente satisfação de ver outra pessoa humilhada, submissa, prejudicada ou em sofrimento.

Isso sem falar nos casos de crimes movidos por impulsos violentos, agressividade descontrolada, hipersensibilidade fútil ou excessos egóicos.

Quem sabe, algum dia, medicina e direito possam trabalhar mais de perto e elucidar a complexidade da natureza humana e o teor dos comportamentos inconsistentes, o grau das influências sociais e culturais, principalmente das pressões de grupo, o papel dos traumas e experiências passadas, a função da educação e ambiente familiar, os gatilhos do estresse e da frustração, o decorrente de problemas de saúde mental e desenvolvimento moral incompleto, e até as consequências da busca por poder e controle, bem como os efeitos sociais da impunidade.

Enquanto isso, o mistério da maldade continua, e nos resta orar e vigiar.

Orar, pedindo equilíbrio e proteção. E vigiar a nós mesmos.

Foto do Danilo Fontenelle

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