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Duelo no Centro das Tapioqueiras
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

Duelo no Centro das Tapioqueiras

Entre caldo de mocotó, tapioca e café, a disposição de um jovem mancebo deu conta uma quantidade absurda da típica gastronomia cearense e mobilizou uma plateia em torno do feito
Tipo Crônica
Panelada legítima com tripa, bucho e mocotó. Acompanha arroz branco e farofa de cuscuz  (Foto: DEÍSA GARCÊZ/Especial para O POVO)
Foto: DEÍSA GARCÊZ/Especial para O POVO Panelada legítima com tripa, bucho e mocotó. Acompanha arroz branco e farofa de cuscuz

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Todo mundo sabe que o cearense é um misto de tradição, inovação, criatividade, ousadia e até imitação, tudo junto com uma incrível vontade de viver e misturado com o nosso jeito de trabalhar e se divertir ao mesmo tempo. E essa maneira de ser também se reflete na gastronomia.

Interessante que não é raro ficarmos encantados com restaurantes sofisticados fora daqui e, ao enviarmos cumprimentos ao chef, vir à mesa uma cabeça como a nossa acompanhada de um sorriso largo anunciando que, se soubesse que erámos conterrâneos, teria caprichado ainda mais.

Muito já se falou dos polos gastronômicos de Fortaleza e a variedade de estabelecimentos para todos os gostos e bolsos, mas existe um local em Messejana que se destaca tanto por sua resistência ao tempo como pela atmosfera acolhedora e autêntica que agrada tanto moradores como turistas.

É o Centro das Tapioqueiras, já no início da CE-040, inaugurado em 9 de janeiro de 2002. Lá se reúnem quase três dezenas de boxes especializados, com espaço para crianças. São mais de 60 tipos de tapiocas, indo das simples até as recheadas e doces, além de cuscuz e pratos típicos de um café nordestino bem forte, acompanhados de música regional em tom que permite que todos conversem.

Pode-se dizer que o crescimento e engajamento do local na nossa cultura se deu de forma orgânica, sem marketing forçado nem promoções artificiais. É frequentado por famílias, namorados e turmas que saem de festas, sendo também conhecido como ponto de encontro de atletas, servindo principalmente como apoio ou trecho final do percurso de ciclistas.

Além de ser um ícone cultural, o Centro das Tapioqueiras desempenha um papel significativo na economia local, gerando empregos e promovendo o empreendedorismo entre as mulheres, que são a maioria das tapioqueiras. Este espaço não só valoriza a tradição culinária do Ceará, mas também contribui para o fortalecimento da economia local, unindo a tradição, o talento e a criatividade do povo cearense.

Foi lá, em um final de semana desses, que presenciei um duelo surreal.

Na mesa ao lado estavam dois casais de jovens, na marca dos seus vinte e poucos anos. Aparentemente vinham de alguma festa e resolveram parar ali para reporem as forças. As moças pediram tapiocas com café com leite e foi nessa hora que a tensão entre os rapazes começou a se formar.

Tudo indicava que eram amigos há tempos e nenhum sinal de altercação se mostrara presente, todos bem-educados e falando em tom de amizade e cortesia. Mas aí um deles pediu um caldo de mocotó, no que foi informado pela simpática atendente que o caldo servia até quatro pessoas. Ele insistiu que queria um só para si, além de tapioca e café. O companheiro duvidou. Ele persistiu. As meninas começaram a rir. O que duvidava disse que se o outro conseguisse tomar todo o caldo, pagaria a conta da mesa. “Pois eu tomo esse diacho”, desafio aceito sob as risadas das moças e um “Nã..” da atendente.

Em alguns minutos o pedido chegou. As comportadas tapiocas e o pacato café cederam o protagonismo para a panela de barro fumegante de caldo grosso e consistente, com pedaços de carne e osso com tutano, colocada bem ao centro, acompanhada de um prato fundo e uma colher que mais parecia uma concha. A expectativa de todos era grande e as mesas vizinhas se demoraram para presenciarem o feito.

Compenetrado, o rapaz, sereno como quem é experiente, pediu dois panos de enxugar prato. Colocou um como babador e o outro ficou à mão. Prevenido, afrouxou o cinto e abriu a camisa. Concentrou-se, deu um suspiro e inclinou-se sobre o prato fundo. As moças riam e tiravam fotos. O outro rapaz telefonava para amigos contando o desafio e as mesas ao lado passaram a acompanhar o feito. Enquanto isso, o rapaz comia compassada e continuamente, enxugando o suor do rosto de quando em vez. Só parava para encher novamente o prato e voltava à empreitada, agora sob incentivos dos circundantes que se acercaram para conferir a façanha.

“Não é possível uma coisa dessas!”, “Isso é um jumento” e “Ele vai acabar estourando” eram expressões ouvidas nos quase quarenta minutos de êxtase pantagruélico.

Ao terminar o duelo, o rapaz lançou a cabeça para trás de olhos fechados, arfando como quem termina uma maratona. Sob aplausos, ainda disse, desdenhoso, “Faltou só uma farinhazinha”, no que foi ovacionado com vaias de contentamento tipicamente cearenses. Ô povo doido e maravilhoso esse nosso.

Foto do Danilo Fontenelle

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