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O bolo do náufrago
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O bolo do náufrago

Não tenho saudades de quase nada, ou de nada mesmo
Tipo Crônica
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Javier Cercas (Foto: Reprodução Wikipédia)
Foto: Reprodução Wikipédia Javier Cercas

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Como já sabem, há duas semanas participei de um curso de escrita. O primeiro exercício foi a criação de um texto a partir de uma foto aleatória, que, no meu caso, era de tangerinas – ou mexericas, como alguns chamam (ver Curso de Escrita). O segundo exercício nos pediu para escrever sobre algo de que tínhamos saudades. A maioria se referiu a pequenos prazeres da infância: lembranças de brincadeiras com amigos, o perfume da loção pós-barba do pai e até a saudade do suorzinho no cangote das filhas bebês, agora mulheres feitas. Uma colega mencionou um abacateiro, sob cuja sombra ela brincava de bonecas e cultivava amores nunca correspondidos.

Javier Cercas diz que ninguém está plenamente satisfeito e que obtemos, com a literatura, coisas que não podemos conseguir fora dela. É como se a literatura fosse uma forma de corrigir a realidade, uma defesa contra as ofensas da vida. Ele afirma que, graças à ficção, podemos experimentar coisas que nossas vidas ainda não apresentaram, nos preparando para enfrentá-las. Assim, alguém que entende as complexidades da vida e suas tragédias através dos livros não evitará as dores, mas lidará melhor com elas.

O autor espanhol afirma que os textos mudam o mundo ao mudar a percepção do leitor, revolucionando-o por dentro, mostrando a realidade como ela é, desmascarando-a e mudando nossa visão das coisas. Também assevera que a literatura nos fascina porque nos mostra que temos algo em comum com os personagens, sempre apresentados de maneira hiperbólica, refletindo nossos muitos defeitos. Assim, é possível reconhecer nossos traços na ambição de Macbeth, na autoconsciência de Hamlet, na impostura de Enric Marco em O Impostor e no amor romântico de Romeu e Julieta.

Ele reforça que vivemos com a ideia falsa de que o presente se explica apenas pelo presente e que o passado está nos arquivos das bibliotecas. Entende que, sem o passado, o presente não se compreende – nem a história, nem a política, nem a vida pessoal. Tudo isso, traduzido nas histórias ficcionais, representa uma mentira consentida que nos liberta. O leitor sabe que o que lê não aconteceu, mas, mesmo assim, aceita ser enganado porque está diante das velhas verdades da alma, e essas verdades fazem a diferença.

A maioria das pessoas tem suas saudades, assim como tem roupas antigas no guarda-roupa. De vez em quando, as tiram, experimentam, se olham no espelho e guardam novamente. Algumas são sagradas, mantidas com carinho e devoção. Fazem bem ao coração, aquecem a alma, dizem.

Não sou dessas pessoas. Não tenho saudades de quase nada, ou de nada mesmo.

"Ah, mas teve a infância, né? Onde a gente brincava sem preocupação e dormia tranquilo", dizem. Pode ser que isso seja verdade para muita gente. A única boa lembrança dessa época é o bolo de chocolate com cobertura de maracujá que minha avó fazia para mim. Era pequeno, mas exclusivo, escrevi no exercício.

"Ah, que bonito!", disseram no curso. Mal sabiam que era o modo dela evitar a fúria de um avô violento com o neto que ousava comer o bolo dele. Bolo de chocolate com cobertura de maracujá. Uma doce saudade em um mar de maldades.

Talvez apenas os náufragos entendam.

Foto do Danilo Fontenelle

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