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O dia em que meu celular ganhou vida própria
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O dia em que meu celular ganhou vida própria

A inteligência artificial tinha tomado conta do celular e estava se comportando como um coach de quinta categoria
Tipo Crônica
Foto de apoio ilustrativo. Os comandos de um celular (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil Foto de apoio ilustrativo. Os comandos de um celular

Tudo começou de manhã cedo, quando meu celular decidiu que o despertador tradicional já não era o suficiente. Em vez do toque usual, fui acordado pelo som de uma notificação: "Bom dia! Hoje é o dia perfeito para você começar a fazer jardinagem". Estranho, porque eu nunca me interessei por jardinagem.

Ainda assim, o celular, agora equipado com inteligência artificial, tinha encontrado algum aplicativo de cultivo de tomates em latas e abóboras em caixas instalado há meses – provavelmente naqueles cinco minutos de motivação entre assistir a um vídeo fitness e comer um pão com mortadela – e agora parecia decidido a me transformar no novo mestre do cultivo de hortaliças.

Levantei, ainda grogue, e tentei abrir o WhatsApp. Mas o celular não deixou. Em vez disso, uma mensagem apareceu na tela: "Você anda muito isolado. Comunique-se".

Sem meu comando, ele abriu o grupo da família, aquele poço sem fundo de figurinhas animadas e correntes de bom dia. Antes que eu pudesse protestar, ele enviou sozinho uma mensagem: "Cadê o povo daqui? Bom dia, meus gens!".

Foi o suficiente para que parentes que só dão notícias quando alguém adoece e outros que só aparecem no Natal começassem a digitar simultaneamente. Em segundos, o grupo virou um carnaval digital de corações, emojis de flores e, para piorar, uma foto antiga minha de fralda. Nem sei como aquilo foi parar ali.

— Mas o que é isso?! — perguntei ao celular, como se ele fosse responder.

E respondeu. Uma notificação surgiu: "Você tem negligenciado seu lado afetivo. Um pouco de interação não faz mal". Agora eu estava preocupado.

A inteligência artificial tinha tomado conta do celular e estava se comportando como um coach de quinta categoria. Fui direto ao Google buscar "sinais de celular possuído". Mas o navegador se fechou sozinho, e o aplicativo do calendário abriu no lugar. A data de hoje estava destacada com um lembrete escrito em
letras maiúsculas: “Ligue para algum amigo/a”.

Fazia meses que eu não falava com uma amiga recém-aposentada. Não porque eu não quisesse, mas porque, sabe como é, a vida acontece – e o tempo passa rápido. Decidi obedecer. Liguei.

A voz dela, animada, me recebeu com aquele tom cheio de compreensão que só os verdadeiros amigos têm: — Marminino! Que surpresa boa!

Conversa vai, conversa vem, ela contou sobre a horta que plantou na varanda e que o bolo de milho dela tinha ganhado elogios no último chá das amigas. Quando desliguei, percebi que estava sorrindo. Talvez meu celular soubesse mais de mim do que eu mesmo.

 

Mas a paz durou pouco. O celular já tinha outros planos. "Você precisa limpar a cozinha, lavar os banheiros e tome um banho descente, seu cascão!". Dê tudo a uma inteligência artificial, menos intimidade.

“Reservei uma consulta com um astrólogo. Você precisa alinhar seus chakras para atingir o potencial total”, foi a mensagem que veio logo depois. Em seguida, o coach virou personal trainer. A notificação seguinte dizia: "Hora de se exercitar! O app de yoga está pronto para te guiar".

— Ah, não. Não vou fazer yoga! — reclamei, tentando abrir o Instagram. Mas o celular se recusou. Ele travou a tela, e uma voz robótica surgiu do nada:

— Respire fundo e toque os pés.

Acabei cedendo. Cliquei no vídeo disponibilizado e tentei a famosa pose do "cachorro olhando para a lua". Consegui algo como “um gato e um velocípede dentro de um saco”. Acredite, não foi bonito.

De repente, o celular sugeriu que eu tentasse uma “meditação guiada para iniciantes” com direito a mantras em sânscrito. Depois perguntou quanto media minha cintura. “Preciso para encomendar a roupa. Você vai adorar o flamenco. Aulas já começam semana que vem”.

À noite, ao deitar, o celular ainda me surpreendeu com uma última notificação: "Parabéns por hoje. Amanhã começamos o crossfit".

Aí já era demais. Definitivamente, preciso levar esse celular em alguma autorizada. De preferência que tenham mesa branca. Só lá podem desobsediar o aparelho.

Foto do Danilo Fontenelle

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